Por Machado de Assis (1872)
Camilo não era espírito observador; mas a alma de Soares andava-lhe tão patente nas mãos, que era impossível deixar de a ver e examinar. Não lhe pareceu mau rapaz, notou-lhe, porém, certa fanfarronice, em todo o gênero de coisas, na política, na caça, no jogo, e até nos amores. Neste último capítulo havia um parágrafo sério; era o que dizia respeito a uma moça, que ele amava loucamente, de tal modo que prometia aniquilar a quem quer que ousasse levantar olhos para ela.
– É o que lhe digo, Camilo, confessava o filho do comerciante, se alguém tiver o atrevimento de pretender essa moça pode contar que há no mundo mais dois desgraçados, ele e eu. Não há de acontecer assim felizmente lá todos me conhecem; sabem que não cochilo para executar o que prometo. Há poucos meses o major Valente perdeu a eleição só porque teve o atrevimento de dizer que ia arranjar a demissão do juiz municipal. Não arranjou a demissão, e por castigo tomou taboca; saiu na lista dos suplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A coisa foi...
– Mas por que não se casa com essa moça? perguntou Camilo, desviando cautelosamente a narração da última vitória eleitoral de Soares.
– Não me caso porque... tem muita curiosidade de o saber?
– Curiosidade... de amigo e nada mais.
– Não me caso porque ela não quer.
Camilo estacou o cavalo.
– Não quer? disse ele espantado. Então por que motivo pretende impedir que ela... – Isso é uma história muito comprida. A Isabel...
– Isabel?... interrompeu Camilo. Ora, espere, será a filha do Dr. Matos, que foi juiz de direito há dez anos?
– Essa mesma.
– Deve estar uma moça?
– Tem seus vinte anos bem contados.
– Lembra-me que era bonitinha aos doze
– Oh! mudou muito... para melhor! Ninguém a vê que não fique logo com a cabeça voltada. Tem rejeitado já uns poucos de casamentos. O último noivo recusado fui eu. A causa por que se me recusou foi ela mesma que me veio dizer.
– E que causa era?
– “Olha, Sr. Soares, disse-me ela. O senhor merece bem que uma moça o aceite por marido; eu era capaz disso, mas não o faço porque nunca seríamos felizes.”
– Que mais?
– Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar.
– Nunca mais se falaram?
– Pelo contrário, falamo-nos muitas vezes. Não mudou comigo; trata-me como dantes. A não serem aquelas palavras que ela me disse, e que ainda me doem cá dentro, eu podia ter esperanças. Vejo, porém, que seriam inúteis; ela não gosta de mim.
– Quer que lhe diga uma coisa com franqueza?
– Diga.
– Parece-me um grande egoísta.
– Pode ser; mas sou assim. Tenho ciúmes de tudo, até do ar que ela respira. Eu, se a visse gostar de outro, e não pudesse impedir o casamento, mudava de terra. O que me vale é a convicção que tenho de que ela não há de gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais.
– Não admira que não saiba amar, reflexionou Camilo, pondo os olhos no horizonte como se estivesse ali a imagem da formosa súdita do czar. Nem todas receberam do céu esse dom, que é o verdadeiro distintivo dos espíritos seletos. Algumas há, porém que sabem dar a vida e a alma a um ente querido, que lhe enchem o coração de profundos afetos, e deste modo fazem jus a uma perpétua adoração. São raras, bem sei, as mulheres desta casta; mas existem... Camilo terminou esta homenagem à dama dos seus pensamentos abrindo as asas a um suspiro que se não chegou ao seu destino, não foi por culpa do autor. O companheiro não compreendeu a intenção do discurso, insistiu em dizer que a formosa goiana estava longe de gostar de ninguém, e ele ainda mais longe de lho consentir.
O assunto agradava aos dois comprovincianos; falaram dele longamente até o aproximar da tarde. Pouco depois chegaram a um pouso, onde deviam pernoitar.
Tirada a carga dos animais, cuidaram os criados primeiramente do café, e, depois do jantar. Nessas ocasiões ainda mais pungiram ao nosso herói as saudades de Paris. Que diferença entre os seus jantares dos restaurants dos boulevards e aquela refeição ligeira e tosca, num miserável pouso de estrada, sem os acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Fígaro ou da Gazette des Tribunaux!
Camilo suspirava consigo mesmo; tornava-se então ainda menos comunicativo. Não se perdia nada porque o seu companheiro falava por dois.
Acabada a refeição, acendeu Camilo um charuto e Soares um cigarro de palha. Era já noite. A fogueira do jantar alumiava um pequeno espaço em roda; mas nem era precisa, porque a lua começava a surgir de trás de um morro, pálida e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas águas tranqüilas do rio que serpeava ali ao pé.
Um dos tropeiros sacou a viola e começou a gargantear uma cantiga, que a qualquer outro encantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao filho do comendador apenas fez lembrar com tristeza as volatas da Ópera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bel amoscovita, molemente sentada num camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, para contemplá-lo de longe, cheirando um raminho de violetas.
(continua...)
ASSIS, Machado de. A parasita azul. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 12, n. 6-9, jun.-set. 1872. (Publicado em folhetins).