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#Contos#Literatura Brasileira

Cantiga Velha

Por Machado de Assis (1883)

Fiquei desesperado. Chamei-me todos os nomes feios: tolo, parvo, maricas, tudo. Gostava de Henriqueta, desde o ano anterior, vivia perto dela, não lhe disse nada; éramos como estranhos. Vem um homem estranho, que nunca a vira provavelmente, e fez-se ousado. Compreendi que a resolução era tudo, ou quase tudo. Entretanto, refleti que ainda podia ser tempo de resgatar o perdido, e tratei, como se diz vulgarmente, de deitar barro à parede. Fiz-me assíduo, busquei-a, cortejei-a. Henriqueta pareceu não entender, e não me tratou mal; quando, porém, a insistência da minha parte foi mais forte, retraiu-se um pouco, outro pouco, até chegar ao estritamente necessário nas nossas relações.

Um dia, pude alcançá-la no quintal da casa, e perguntei-lhe se queria que me fosse embora.

— Embora? repetiu ela.

— Sim, diga se quer que eu vá embora.

— Mas como é que hei de querer que o senhor se vá embora?

— Sabe como, disse-lhe eu dando à voz um tom particular. Henriqueta quis retirar-se; eu peguei-lhe na mão; ela olhou espantada para as casas vizinhas.

— Vamos, decida?

— Deixe-me, deixe-me, respondeu ela. Puxou a mão e foi para dentro. Eu fiquei sozinho. Compreendi que ela pertencia ao outro, ou pelo menos, não me pertencia absolutamente nada. Resolvi mudar-me; à noite fui dizê-lo à mãe, que olhou espantada para mim e perguntou-me se me tinham feito algum mal.

— Nenhum mal.

— Mas então...

— Preciso mudar-me, disse eu.

D. Cora ficou abatida e triste. Não podia atinar com a causa; e pediu-me que esperasse até o fim do mês; disse-lhe que sim. Henriqueta não estava presente, e eu pouco depois saí. Não as vi durante três dias. No quarto dia, achei Henriqueta sozinha na sala; ela veio para mim, e perguntou-me por que motivo ia sair da casa. Calei-me.

— Sei que é por mim, disse ela.

Não lhe disse nada.

— Mas que culpa tenho eu se...

— Não diga o resto! Que culpa tem de não gostar de mim? Na verdade, nenhuma culpa; mas, se eu gosto da senhora, também não tenho culpa, e, nesse caso, para que castigar me com a sua presença forçada?

Henriqueta ficou alguns minutos calada, olhando para o chão. Tive a ingenuidade de supor que ela ia aceitar-me, só para não ver-me ir; acreditei ter vencido o outro, e iludia me. Henriqueta pensava no melhor modo de me dizer uma cousa difícil; e afinal, achou-o, e foi o modo natural, sem reticências nem alegorias. Pediu-me que ficasse, porque era um modo de ajudar as despesas da mãe; prometia-me, entretanto, que apareceria o menos que pudesse. Confesso-lhes que fiquei profundamente comovido. Não achei nada que responder; não podia teimar, não queria aceitar, e, sem olhar para ela, sentia que faltava

pouco para que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. A mãe entrou; e foi uma fortuna.

CAPÍTULO III

Veríssimo interrompeu a narração, porque algumas moças entraram a buscá-la. Faltavam pares; não admitiam demora.

— Dez minutos, ao menos?

— Nem dez.

— Cinco?

— Cinco apenas.

Elas saíram; ele concluiu a história.

— Retirado ao meu quarto, meditei cerca de uma hora no que me cumpria fazer. Era duro ficar, e eu chegava a achar até humilhante; mas custava-me desamparar a mãe, desprezando o pedido da filha. Achei um meio-termo; ficava pensionista como era; mas passaria fora a maior parte do tempo. Evitaria a combustão.

D. Cora sentiu naturalmente a mudança, ao cabo de quinze dias; imaginou que eu tinha algumas queixas, rodeou-me de grandes cuidados, até que me interrogou diretamente. Respondi-lhe o que me veio à cabeça, dando à palavra um tom livre e alegre, mas calculadamente alegre, quero dizer com a intenção visível de fingir. Era um modo de pô-la no caminho da verdade, e ver se ela intercedia em meu favor.

D. Cora, porém, não entendeu nada.

Quanto ao Fausto, continuou a freqüentar a casa, e o namoro de Henriqueta acentuou-se mais. Candinha, a irmã dela, é que me contava tudo — o que sabia, ao menos, — porque eu na minha raiva de preterido, indagava muito, tanto a respeito de Henriqueta como a respeito do boticário. Assim é que soube que Henriqueta gostava cada vez mais dele, e ele parece que dela, mas não se comunicavam claramente. Candinha ignorava os meus sentimentos, ou fingia ignorá-los; pode ser mesmo que tivesse o plano de substituir a irmã. Não afianço nada, porque não me sobrava muita penetração e frieza de espírito. Sabia o principal, e o principal era bastante para eliminar o resto.

O que soube dele é que era viúvo, mas tinha uma amante e dous filhos desta, um de peito, outro três anos. Contaram-me mesmo alguns pormenores acerca dessa família improvisada, que não repito por não serem precisos, e porque as moças estão esperando na sala. O importante é que a tal família existia.

Assim se passaram dous longos meses. No fim desse tempo, ou mais, quase três meses — D. Cora veio ter comigo muito alegre; tinha uma notícia para dar-me, muito importante, e queria que eu adivinhasse o que era — um casamento.

Creio que empalideci. D. Cora, em todo caso, olhou para mim admirada, e, durante alguns

(continua...)

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