Letras+ | Letródromo | Letropédia | LiRA | PALCO | UnDF


Compartilhar Reportar
#Contos#Literatura Brasileira

Ayres e Vergueiro

Por Machado de Assis (1871)

Com verdade se diz que é nos grandes infortúnios que se conhecem as verdadeiras amizades. Ayres encontrou da parte do sócio e da mulher a mais sublime dedicação. Carlota foi para ele uma verdadeira irmã; ninguém levou mais longe e mais alto a solicitude. Ayres comia pouco; arranjou-lhe ela comidas próprias para lhe vencer o fastio. Conversava com ele longas horas, ensinava-lhe alguns jogos, lia-lhe o Saint Clair das Ilhas, aquela velha história de uns desterrados da ilha da Barra. Pode-se afiançar que a dedicação de Carlota foi o principal medicamento que restituiu à vida o nosso Pedro Ayres.

Vergueiro aplaudia in petto o procedimento de sua mulher. Quem meu filho beija, minha boca adoça, diz um adágio; Vergueiro tinha para com o sócio extremos de pai; tudo o que se fizesse ao Ayres, era agradecido por ele do fundo da sua grande alma. Nascida da simpatia, criada no infortúnio comum, a amizade de Ayres e Vergueiro assumiu as proporções do ideal. Na vizinhança, já ninguém recorria às expressões proverbiais para significar uma amizade íntima; não se dizia de dois amigos: são unha e carne; dizia-se: Ayres com Vergueiro. Diógenes teria achado ali um homem, e realmente ambos formavam uma só criatura.

Nunca mais sucedeu andarem com roupa de cor, fazenda ou feitio diferentes; vestiam-se igualmente, como se até nisso quisessem mostrar a perpétua aliança de suas nobres almas. Faziam mais: compravam chapéus e sapatos no mesmo dia, ainda que um deles os houvesse estragado menos que o outro.

Jantar, baile ou passeio a que um fosse havia de ir o outro por força, e ninguém se animava a convidá-los separadamente.

Não eram, pois, dois sócios simples que procuravam dos seus esforços juntos obter cada qual a sua riqueza.

Não.

Eram dois amigos íntimos, dois corações iguais, dois irmãos siameses, eternamente vinculados na terra, labutando para alcançar os bens da sorte, mas sem nenhuma idéia de os separarem jamais.

E a fortuna os ajudou, por maneira que dentro de dois anos já havia idéia de liquidar o negócio, e irem os dois e mais Carlota viver tranqüilamente em uma fazenda, comendo o ganhado na graça de Deus e pleno esquecimento dos homens.

Que mau demônio, que ruim espírito veio meter-se entre eles para lhes impedir esta excelente idéia?

A fortuna varia como a mulher; depois de os haver favorecido, começou a desandar. Meteram-se eles em negócios arriscados e perderam alguma coisa. Todavia ainda tinham um bom pecúlio.

— Vamos liquidar? perguntou um dia Ayres a Vergueiro.

— Vamos.

Inventariaram as fazendas, cotejaram o seu valor com a soma das dívidas, e repararam que, se pagassem integralmente aos credores, ficariam com uma soma mesquinha para ambos.

— Continuemos o negócio, disse Ayres; trabalharemos até resgatarmos a antiga posição. — Justo... mas eu tenho uma idéia, disse Vergueiro.

— E eu tenho outra, respondeu o sócio. Qual é a tua?

— Dir-ta-ei domingo.

— E eu comunicarei nesse mesmo dia a minha idéia, e veremos qual delas serve, ou se se combinam ambas.

Seria coisa extremamente nova, e até certo ponto digna de pasmo, que aqueles modelos da verdadeira amizade tivessem idéias divergentes. A idéia anunciada para o domingo seguinte era a mesmíssima idéia, tanto no cérebro de Ayres, como no de Vergueiro. Consistia em liquidar à sorrelfa: iriam vendendo pouco a pouco as fazendas, e sairiam da corte sem dizer adeus aos credores.

A idéia não era original; bonita parece que também não; mas era útil e praticável. Ficou assentado que esta resolução não seria comunicada à mulher de Vergueiro. — Reconheço, dizia Ayres, que é uma senhora de alta prudência e rara discrição... — Não tem dúvida.

— Mas o espírito das senhoras é cheio de alguns escrúpulos, e se ela nos fosse à mão, tudo ficaria perdido.

— Estava pensando a mesma coisa, observou Vergueiro.

Concordes na promessa, não menos o foram na infidelidade. No dia seguinte, Ayres ia comunicar confidencialmente o plano à esposa de Vergueiro, e começou a dizer: — Nós vamos liquidar aos poucos...

— Já sei, respondeu Carlota, ele já me disse tudo.

Façamos justiça a esta distinta moça; depois de tentar dissuadir o marido do projeto, tentou dissuadir o sócio, mas tanto um como o outro ostentaram uma tenacidade de ferro em suas opiniões. Divergiam no modo de encarar a questão. Vergueiro não contestava a imoralidade do ato, mas achava que o benefício compensava a imoralidade; reduziu a dissertação a esta expressão popular: ande eu quente e ria-se a gente. Ayres não admitia que o projeto ofendesse as leis da moral. Ele começava separando a moral e o dinheiro. O dinheiro é coisa de si tão mesquinha, que não podia penetrar na região sublime da moral.

— Deus, observava ele, não quer saber quanto pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.

(continua...)

1234
Baixar texto completo (.txt)

← Voltar← AnteriorPróximo →