Por Machado de Assis (1886)
Consultada particularmente acerca do pedido de Valentim, Clarinha não hesitou um momento: recusou. Foi um escândalo doméstico. Interveio a tia, munida de dois conselhos e dois axiomas, para convencer a rapariga de que devia aceitar a mão do rapaz. O velho assumiu as proporções de semideus e atroava a casa; finalmente Ernesto exasperado prorrompeu em protestos enérgicos, sem poupar alguns adjetivos mais ou menos desairosos para a autoridade paternal.
Do que resultou ser o rapaz expulso de casa pela segunda vez, e ficar assentado de pedra e cal que Clarinha casaria com Valentim.
Quando Valentim foi de novo saber do resultado do pedido, o velho afirmou-lhe que Clarinha consentia em aceitá-lo por marido. Valentim manifestou logo um desejo legítimo de falar à noiva, mas o futuro sogro respondeu-lhe que ela se achava meio incomodada. O incômodo era nem mais nem menos resultante das cenas a que dera lugar o pedido de casamento.
O velho contava com a docilidade de Clarinha, e não se iludia. A pobre menina, antes de tudo, acatava o pai e recebia as ordens dele como se foram artigos de fé. Passada a primeira comoção, teve de resignar-se a aceitar a mão de Valentim.
O leitor, que ainda anda à procura das astúcias do marido, sem que ainda tenha visto nem marido, nem astúcias, ao chegar a este ponto exclama naturalmente: — Ora, graças a Deus! já temos um marido.
E eu, para furtar-me à obrigação de narrar o casamento e a lua-de mel, passo a escrever o terceiro capítulo.
III
Lua-de-mel!
Há sempre uma lua-de-mel em todos os casamentos, não a houve no casamento de Valentim. O pobre noivo viu na reserva de Clarinha um acanhamento natural do estado em que ia entrar; mas desde que, passados os primeiros dias, a moça não saía do mesmo propósito, Valentim concluiu que havia enguia na erva.
O autor desta novela não se viu ainda em situação igual, nem também caiu num poço de cabeça para baixo, mas acredita que a impressão deve ser absolutamente a mesma. Valentim fez o seguinte raciocínio:
— Se Clarinha não me ama é que ama alguém; esse alguém talvez não me valha, mas tem sobre mim a grande vantagem de ser preferido. Ora, esse alguém quem é? Desde então a questão de Otelo entrou no espírito de Valentim e fez cama aí: ser ou não ser amado, tal era o problema do infeliz marido.
Amar uma mulher moça, bela, adorável e adorada; ter a subida glória de possuí-la de poucos dias, à face da Igreja, à face da sociedade; viver por ela e para ela; mas ter ao mesmo tempo a certeza de que diante de si não existe mais do que o corpo frio e insensível, e que a alma vagueia em busca da alma do outro; transformar-se ele, noivo e amante, em objeto de luxo, em simples pessoa oficial, sem um elo do coração, sem uma centelha de amor que lhe dê a posse inteira daquela que ama, tal era a miseranda e dolorosa situação de Valentim.
Como homem de espírito e de coração, o rapaz compreendeu a sua situação. Negá-la era absurdo, confessá-la no interior era ganhar metade do caminho, porque era saber o terreno que pisava. Valentim não se deteve em suposições vãs; assegurou-se da verdade e tratou de descobri-la.
Mas como? Perguntar à própria Clarinha, era inaugurar o casamento por uma desconsideração, e qualquer que fosse o direito que tivesse de resgatar o coração da mulher, Valentim não queria desprestigiá-la aos seus próprios olhos. Restava a pesquisa. Mas de que modo exercê-la? À casa dele não ia ninguém; e demais, se alguma coisa havia, devera ter começado em casa do pai. Interrogar o pai seria assisado? Valentim desistiu de toda a investigação do passado e dispôs-se simplesmente a analisar o presente.
A reserva de Clarinha não era uma dessas reservas que levam o desespero ao fundo do coração; era uma reserva dócil e submissa. E era exatamente isso o que feria o despeito e a vaidade de Valentim. A submissão de Clarinha parecia a resignação do condenado à morte. Valentim via nessa resignação um protesto mudo contra ele; cada olhar da moça parecia-lhe anunciar um remorso.
Uma tarde...
O leitor há de ter achado muito singular que eu não tenha marcado nesta novela os lugares em que se passam as diversas cenas de que ela se compõe. É de propósito que faço: limitei-me a dizer que a ação se passava no Rio de Janeiro. Fica à vontade do leitor marcar as ruas e até as casas.
Uma tarde, Valentim e Clarinha achavam-se no jardim. Se se amassem igualmente estariam àquela hora num verdadeiro céu; o sol parecia ter guardado um dos seus melhores ocasos para aquela tarde. Mas os dois esposos pareciam apenas dois conhecidos que por acaso se haviam encontrado num hotel; ela por uma reserva natural e que tinha explicação no amor de Ernesto, ele por uma reserva estudada, filha do ciúme e do despeito.
O sol morria numa das suas melhores mortes; uma aragem fresca agitava mansamente as folhas dos arbustos e trazia ao lugar onde se achavam os dois esposos o doce aroma das acácias e das magnólias.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Astúcias de marido. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1886.