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#Contos#Literatura Brasileira

A Mágoa do Infeliz Cosme

Por Machado de Assis (1875)

O viúvo continuou:

- Demais, ainda que eu fosse um homem de interesse, a minha boa Carlota devia tornar me um amigo. Nunca vi mais nobre desinteresse que o dela. Alguns dias antes de morrer quis fazer testamento. Baldei todos os esforços para impedi-la; ela foi mais forte do que eu. Tive de ceder. Nesse testamento constituiu-me ela seu herdeiro universal. Ah! eu daria toda a herança por uma semana mais de existência para ela. Uma semana? que digo? por uma hora mais!

IV

Os dois amigos foram interrompidos por um escravo que trazia uma carta. Cosme leu a carta e perguntou:

- Esse homem está aí?

- Está na sala.

- Lá vou.

O escravo saiu.

- Veja, senhor! Não se pode durante uma hora falar ao coração; a prosa da vida aí vem. Permite-me?

- Pois não.

Cosme saiu e foi à sala; Oliveira ficou só no gabinete, onde tudo lhe recordava os tempos de outrora. Estava ainda ao pé da escrivaninha o banquinho onde Carlota pousava os pés; Oliveira teve ímpetos de beijá-lo. Tudo ali, até as gravuras de que Carlota gostava tanto, tudo ali parecia ter impressa a viva imagem da moça.

No meio das reflexões foi interrompido pelo infeliz Cosme.

- Perdão! disse este, venho buscar uma coisa; volto já.

Cosme abriu uma gaveta, tirou de dentro algumas caixas de jóias, e saiu. Oliveira teve curiosidade de saber para que fim o viúvo levava as jóias, mas ele não lhe deu tempo de o interrogar.

Nem era preciso.

O próprio Cosme veio dizer-lho cerca de dez minutos depois.

- Meu amigo, disse ele, isto é insuportável.

- Que há?

- Lá se foi parte da minha existência. As jóias de minha mulher...

Não pôde acabar; caiu sobre uma cadeira e pôs a cabeça nas mãos. Oliveira respeitou aquela explosão de dor, que ele não compreendia. Ao cabo de algum tempo, Cosme levantou a cabeça; tinha os olhos vermelhos. Esteve ainda alguns segundos calado. Enfim:

- O homem a quem fui falar veio buscar as jóias de minha mulher. Obedeço a uma expressa vontade dela.

- Vontade dela?

- Um capricho, talvez, mas um capricho digno do seu coração. Carlota pediu-me que não me tornasse a casar. Era inútil o pedido, porque depois de ter perdido aquele anjo, é claro que eu não tornaria ligar a minha existência à de nenhuma outra mulher. - Oh! decerto!

- Todavia, exigiu que lho jurasse. Jurei. Não se contentou com isso. - Não?

- "Tu não sabes o que pode acontecer no futuro, disse-me ela; quem sabe se o destino não te obrigará a esquecer este juramento que me fizeste? Exijo uma coisa mais, exijo que vendas as minhas jóias, a fim de que outra mulher não as ponha sobre si". O infeliz Cosme terminou esta revelação com um suspiro. Oliveira estava interiormente dominado por um sentimento de inveja. Não era inveja somente, eram também ciúmes. Pobre Oliveira! era completa a sua desgraça! A mulher que ele amava tanto se desfazia em provas de amor com o marido na hora solene em que se despedia da terra. Estas reflexões fazia o triste namorado, enquanto o infeliz Cosme, todo entregue à doce imagem da esposa extinta, interrompia o silêncio com suspiros que vinham diretamente do coração.

- Vendi as jóias, disse Cosme depois de algum tempo de meditação, e o senhor pode avaliar a mágoa com que me desfiz delas. Bem vê que foi ainda uma prova de amor que dei à minha Carlota. Todavia, exigi profundo silêncio do joalheiro e o mesmo exijo do senhor... Sabe por quê?

Oliveira fez sinal que não entendia.

- É porque eu não vou contar a todos a cena que se passou unicamente entre mim e ela. Achariam ridículo, alguns nem lhe dariam crédito. De maneira, que eu não poderia escapar à reputação de avaro e mau homem, que nem uma doce lembrança sabia guardar da mulher que o amou.

- Tem razão.

O infeliz Cosme tirou melancolicamente o lenço da algibeira, assoou-se e prosseguiu: - Mas teria razão o mundo, ainda quando aquele anjo me não houvesse pedido o sacrifício que acabo de fazer? Vale mais uma lembrança representada por pedras de valor do que a lembrança representada na saudade que fica no coração? Com franqueza, eu detesto esse materialismo, esse aniquilamento da alma, em proveito de coisas passageiras e estéreis. Bem fraco deve ser o amor que precisa de objetos palpáveis e sobretudo valiosos, para não ser esquecido. A verdadeira jóia, meu amigo, é o coração. Oliveira respondeu a esta teoria do infeliz Cosme com um desses gestos que não afirmam nem negam, e que exprimem o estado duvidoso do espírito. Efetivamente, o mancebo estava perplexo ao ouvir as palavras do viúvo. Era claro para ele que a saudade existe no coração, sem necessidade de recordações externas, mas não admitia de todo que o uso de guardar alguma lembrança das pessoas mortas fosse um materialismo, como dizia o infeliz Cosme.

Estas mesmas dúvidas expôs ele ao amigo, depois de alguns minutos de silêncio, e foram ouvidas com um sorriso benévolo da parte deste.

(continua...)

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