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#Contos#Literatura Brasileira

A Parasita Azul

Por Machado de Assis (1872)

– Oh! não! Nunca, meu caro Alexis, nunca desonrarei a tua memória unindo-me a outro. Isto eram punhais que dilaceravam o coração de Camilo. O jovem médico jurava por todos os santos do calendário latino e grego que nunca amara a ninguém como à formosa princesa. A bárbara senhora parecia às vezes disposta a crer nos protestos de Camilo; outras vezes porém abanava a cabeça e pedia perdão à sombra do venerado príncipe Alexis. Neste meio tempo chegou uma carta decisiva do comendador. O velho goiano intimava pela última vez ao filho que voltasse, sob pena de lhe suspender todos os recursos e trancar-lhe a porta.

Não era possível tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave moléstia mas a idéia de que o pai podia acreditar nela e suspender-lhe realmente os meios, aluiu de todo este projeto. Camilo sem ânimo teve de ir confessar a sua posição à bela princesa; receava além disso que ela, por um rasgo de generosidade, - natural em que se ama, - quisesse dividir com ele as suas terras de Novgorod. Aceitá-las seria humilhação, recusá-las poderia ser ofensa. Camilo preferiu sair de paris deixando à princesa uma carta em que lhe contava singelamente os acontecimentos e prometia voltar algum dia.

Tais eram as calamidades com que o destino quisera abater o ânimo de Camilo. Todas elas repassou na memória o infeliz viajante, até que ouviu bater oito horas da noite. Saiu um pouco para tomar ar, e ainda mais se lhe acenderam as saudades de paris. Tudo lhe parecia lúgubre, acanhado, mesquinho. Olhou cm desdém olímpico para todas as lojas da rua do Ouvidor, que lhe pareceu apenas um beco muito comprido e muito iluminado. Achava os homens deselegantes, as senhoras desgraciosas. Lembrou-se, porém, que Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense que o Rio de Janeiro, e então, abatido com esta importuna idéias, correu para o hotel e deitou-se a dormir.

No dia seguinte, logo depois de almoço, foi a casa do correspondente de seu pai. Declarou-lhe que tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para Goiás, e recebeu dele os necessários recursos, segundo as ordens já dadas pelo comendador. O correspondente acrescentou que estava incumbido de lhe facilitar tudo o que quisesse no caso de desejar passar algumas semanas na corte.

– Não, respondeu Camilo; nada me prende à corte e estou ansioso por me ver a caminho. – Imagino as saudades que há de ter. Há quantos anos?

– Oito.

– Oito! Já é uma ausência longa.

Camilo ia-se dispondo a sair, quando viu entrar um sujeito alto, magro, com alguma barba em baixo do queixo e bigode, vestido com um paletó de brim pardo e trazendo na cabeça um chapéu de Chile. O sujeito olhou para Camilo, estacou, recuou um passo, e depois de uma razoável hesitação, exclamou:

– Não me engano! é o Sr. Camilo!

– Camilo Seabra, com efeito, respondeu o filho do comendador, lançando um olhar interrogativo ao dono da casa.

– Este senhor, disse o correspondente, é o Sr. Soares, filho do negociante do mesmo nome, da cidade de Santa Luzia.

– Quê! é o Leonardo que eu deixei apenas com um buço...

– Em carne e osso interrompeu Soares; é o mesmo Leandro que lhe aparece agora todo barbado, como o senhor, que também está com bigodes bonitos!

– Pois não o conhecia...

– Conheci-o eu apenas o vi, apesar de o achar muito mudado do que era. Está agora um moço apurado. Eu é que estou velho. Já cá estão vinte e seis... Não se ria: estou velho. Quando chegou?

– Ontem.

– E quando segue viagem para Goiás?

– Espero o primeiro vapor de Santos.

– Nem de propósito! Iremos juntos.

– Como está seu pai? Como vai toda aquela gente? O padre Maciel? O Veiga? Dê-me notícias de todos e de tudo.

– Temos tempo para conversar à vontade. Por agora só lhe digo que todos vão bem. O vigário é que esteve, dois meses doente de uma febre maligna e ninguém pensava que arribasse; mas arribou. Deus nos livre que o homem adoeça, agora que estamos com o Espírito Santo à porta. – Ainda fazem aquelas festas?

– Pois então! O imperador, este ano, é o coronel Veiga; e diz que quer fazer as coisas com todo o brilho. Já prometeu que daria um baile. Mas nós temos tempo de conversar, ou aqui ou em caminho. Onde está morando?

Camilo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, satisfeito de haver encontrado um companheiro que de algum modo lhe diminuísse os tédios de tão longa viagem. Soares chegou à porta e acompanhou com os olhos o filho do comendador até perdê-lo de vista.

– Veja o senhor o que é andar por estas terras estrangeiras, disse ele ao correspondente, que também chegava à porta. Que mudança fez aquele rapaz, que era pouco mais ou menos como eu.

CAPÍTULO II

PARA GOIÁS

Daí a dias seguiam ambos para Santos, de lá para São Paulo e tomavam a estrada de Goiás.

Soares, à medida que ia reavendo a antiga amizade com o filho do comendador, contava-lhe as memórias da sua vida, durante os oito anos de separação, e, à falta de coisa melhor, era isto o que entretinha o médico nas ocasiões e lugares em que a natureza lhe não oferecia algum espetáculo dos seus. Ao cabo de umas quantas léguas de marcha estava Camilo informado das rixas eleitorais de Soares, das suas aventuras na caça, das suas proezas amorosas, e de muitas coisas mais, umas graves, outras fúteis, que Soares narrava com igual entusiasmo e interesse.

(continua...)

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