Por Machado de Assis (1875)
Tais eram as reflexões que Júlio fazia, com o retrato numa das mãos e a vela na outra, enquanto já de volta entrava em casa.
Não será preciso dizer que o nosso Júlio não dormiu o resto da noite. Chegou a ir à cama e a fechar os olhos; tinha o corpo moído e necessidade de sono; mas a imaginação velava, e a madrugada veio achá-lo acordado e aflito.
No dia seguinte foi visitar Isabel; achou-a triste; falou-lhe; mas quando quis dizer-lhe alguma cousa do sucesso, a moça afastou-se dele, talvez porque adivinhasse o que ia ele dizer-lhe, talvez porque já estivesse aborrecida de o ouvir.
Júlio foi a casa de Luísa, achou-a no mesmo estado, as mesmas circunstâncias se deram.
"É claro que descobriram o segredo uma da outra, dizia ele consigo. Não há remédio senão desfazer a má impressão de ambas. Mas como se me não querem ouvir? Ao mesmo tempo desejava explicação do ato atrevido que ontem praticaram, salvo se foi sonho meu, o que é bem possível. Ou então estarei doudo..."
Antes de ir adiante, e não será longe porque a história é pequena, convém dizer que este Júlio não tinha paixão real por nenhuma das duas moças. Começou o namoro com Isabel por ocasião de uma ceia de Natal, e travou relações com a família que o recebera muito bem. Isabel correspondeu um pouco ao namoro de Júlio, sem todavia lhe dar grandes esperanças porque então andava também à corda de um oficial do exército que teve de embarcar para o Sul. Só depois que ele embarcou foi que Isabel de todo se voltou para Júlio.
Ora, o nosso Júlio já então lançara as suas baterias contra a outra fortaleza, a formosa Luísa, amiga de Isabel, e que desde princípio aceitou o namoro com ambas as mãos.
Nem por isso rejeitou a corda que lhe dava Isabel; manteve-se entre as duas sem saber qual delas devia preferir. O coração não tinha a este respeito opinião assentada. Júlio não amava, repito; era incapaz de amar... Seu fim era casar com uma moça bonita; ambas o eram, restava lhe saber qual delas lhe convinha mais.
As duas moças, como vimos pelos retratos, eram amigas, mas falavam se de longe em longe, sem que nessas poucas vezes houvessem comunicado os segredos atuais do seu coração. Ocorreria isso agora e seria essa a explicação da cena dos retratos? Júlio pensou efetivamente que elas haviam enfim comunicado o seu namoro com ele; mas custava lhe a crer que tão atrevidas fossem ambas, que saíssem da casa naquela singular noite. À proporção que o tempo se passava, Júlio inclinava-se a crer que o fato não passasse de uma ilusão sua.
Júlio escreveu uma carta a cada uma das duas moças, quase do mesmo teor, pedindo a explicação da frieza que ambas ultimamente lhe mostravam. Cada uma das cartas terminava perguntando "se era tão cruelmente que se devia pagar um amor único e delirante". Não teve resposta imediatamente como esperava, mas dous dias depois, não do mesmo teor, mas no mesmo sentido.
Ambas lhe diziam que pusesse a mão na consciência.
"Não há dúvida, pensou ele consigo, estou pilhado. Como sairei eu desta situação?"
Júlio resolveu atacar verbalmente as duas fortalezas.
— Isto de cartas não é bom recurso para mim, disse ele; encaremos o inimigo; é mais seguro.
Escolheu Isabel em primeiro lugar. Haviam já passado seis ou sete dias depois da cena noturna. Júlio preparou-se mentalmente com todas as armas necessárias ao ataque e à defesa e dirigiu-se para casa de Isabel, que era como sabemos na Rua de S. Pedro.
Foi-lhe difícil achar-se a sós com a moça; porque a moça que das outras vezes era a primeira a buscar ocasião de lhe falar, agora esquivava-se a isso. O rapaz entretanto era teimoso; tanto fez que pôde pilhá-la numa janela, e ali ex abrupto disparou-lhe esta pergunta:
— Não me dará a explicação dos seus modos de hoje e da carta com que respondeu à minha última?
Isabel calou-se.
Júlio repetiu a pergunta, mas já com um tom que exigia resposta imediata. Isabel fez um gesto de aborrecimento e disse: — Respondo o que lhe disse na carta; ponha a mão na consciência. — Mas que fiz eu então?
Isabel sorriu-se com um ar de lástima.
— O que fez? perguntou ela.
— Sim, o que fiz?
— Deveras, ignora?
— Quer que lhe jure?
— Queria ver isto...
— Isabel, essas palavras!...
— São dum coração ofendido, interrompeu a moça com amargura. O senhor ama a outra.
— Eu?...
Aqui desisto de descrever o gesto de espanto de Júlio; a pena nunca o poderia fazer, nem talvez o pincel. Era o agente mais natural, mais aparentemente espontâneo que ainda se viu neste mundo, a tal ponto que a moça vacilou, e atenuou as suas primeiras palavras com estas:
— Pelo menos, parece...
— Mas como?
— Vi-o olhar com certo ar para a Luísa, quando outro dia ela aqui esteve...
— Nego.
— Nega? Pois bem; mas negará também que, vendo o retrato dela, no meu álbum, me disse: É tão bonita esta moça!
— Pode ser que o dissesse; creio até que o disse... há cousa de oito dias; mas que prova isso?
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa, Não Casa. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1875-1876.