Por Machado de Assis (1871)
Carlota era sincera no prazer que tinha em ver casada a irmã do marido, sem se preocupar com o resultado disso, que era tirar-lhe a companhia a que já se acostumara. Vergueiro refletiu na inconveniência de confiar nas informações de um moleque ignorante, que devia ter a respeito da probidade e da distinção idéias sumamente vagas. Para suprir esta inconveniência, lembrou-se de ir em pessoa falar com Pedro Ayres, e assentou que o faria no domingo próximo. A mulher aprovou a resolução, mas o pretendente cortou-lhe as vazas, indo ele mesmo no sábado à casa de Vergueiro, expor os seus desejos e títulos. Pedro Ayres era homem bem apessoado; tinha grandes suíças e um pequeno bigode. Vestia com certa elegância, e tinha os gestos desembaraçados. Algum severo juiz podia achar-lhe um inexplicável horror à gramática; mas nem Vergueiro, nem Carlota, nem Luísa, estavam em melhores relações com a mesma senhora, de maneira que este pequeno senão passou completamente despercebido.
Ayres deixou a melhor impressão em toda a família. Desde logo ficou assentado que se esperasse algum tempo, a fim de completar o prazo do luto. Isso, porém, não embaraçou as vindas de Ayres à casa da noiva; começou indo lá três vezes por semana, e acabou indo todos os dias.
Ao cabo de poucas semanas, já Vergueiro dizia:
— Ó Ayres, queres mais açúcar?
E Ayres respondia:
— Dá cá mais um pouco, Vergueiro.
Estreitou-se a amizade entre ambos. Eram necessários um para o outro. Quando Ayres não ia à casa de Vergueiro, este passava a noite mal. Ayres detestava o jogo; mas a amizade que tinha a Vergueiro bastou para que depressa aprendesse e jogasse o gamão, a ponto que chegou a vencer o mestre. Nos domingos, Ayres jantava com Vergueiro; e dividia a tarde e a noite entre o gamão e Luísa.
As duas moças, longe de se zangarem com este namoro dos dois, pareciam contentes e felizes. Viam nisso uma fiança de futura concórdia.
Um dia entrou Ayres na loja de Vergueiro e pediu-lhe uma conferência particular. — Que temos? disse Vergueiro.
— Daqui a dois meses, respondeu Ayres, é o meu casamento; vou ficar indissoluvelmente ligado à tua família. Tive uma idéia...
— Uma idéia tua deve ser excelente, observou Vergueiro abaixando o colete que havia fugido insolentemente do seu lugar.
— Tenho uns contos de réis. Queres-me para sócio? Ligaremos deste modo o sangue e a bolsa.
A resposta de Vergueiro foi menos circunspecta do que convinha em casos tais. Levantou-se e caiu nos braços do amigo, exatamente como faria um sujeito falido a quem lhe oferecessem uma tábua de salvação. Mas nem Ayres teve semelhante suspeita, nem acertaria se a tivesse. Vergueiro nutria pelo futuro cunhado um sentimento de entusiástica amizade, e achou naquela idéia um documento da afeição do outro.
No dia seguinte deram os passos necessários para organizar a sociedade, e dentro de pouco tempo foi chamado um pintor para traçar nos portais da loja estes dois nomes, já agora indissoluvelmente ligados: Ayres & Vergueiro.
Vergueiro insistiu em que o nome do amigo estivesse antes do seu.
No dia desta pintura, houve jantar em casa, e a ele assistiram algumas pessoas íntimas, todas as quais ficaram morrendo de amores pelo sócio de Vergueiro. Estou a ver o meu leitor aborrecido com esta singela narração de ocorrências prosaicas e vulgares, sem nenhum interesse romanesco, sem que apareça nem de longe a orelha de uma peripécia dramática.
Tenha paciência.
É verdade que, feita a sociedade, e casado o novo sócio, a vida de toda esta gente não poderá oferecer interesse nenhum que valha dois caracóis. Mas aqui intervém uma personagem nova, a qual vem destruir tudo o que o leitor pode imaginar. Não é só uma personagem; são duas, irmãs ambas poderosas: a Doença e a Morte. A doença entrou por casa de nosso amigo Vergueiro e prostrou na cama durante dois longos meses a viúva-noiva. Não se descreve o desespero de Ayres vendo o estado grave daquela a quem ele amava mais que tudo. Esta circunstância de ver o amigo desesperado, aumentou a dor de Vergueiro, que já devia sentir bastante com os padecimentos da irmã.
Do que era a moléstia, divergiram os médicos; e todos eles com sólidas razões. O que não provocou nenhuma divergência da parte dos médicos, nem das pessoas da casa, foi o passamento da moça que se verificou às 4 horas da madrugada de um dia de setembro. A dor de Ayres foi tremenda; atirou-se ao caixão quando os convidados o vieram buscar para o coche, e não comeu um pedaço de pão durante três dias.
Vergueiro e Carlota recearam pela saúde e até pela vida do malfadado noivo, pelo que foi assentado que ele se mudaria para a casa de Vergueiro, onde seria vigiado de mais perto.
Seguiu-se à expansão daquele imenso infortúnio um abatimento prolongado; mas a alma readquiriu as forças perdidas, e o corpo com ela se foi restabelecendo. No fim de um mês já o sócio de Vergueiro assistia ao negócio e dirigia a escrituração.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Ayres e Vergueiro. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1871.