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#Contos#Literatura Brasileira

Astúcias de Marido

Por Machado de Assis (1886)

Para que encobri-lo mais? Não sou romancista que me alegre com as torturas do leitor, pousando, como o abutre de Prometeu, no fígado da paciência sempre renascente. Direi as coisas como elas são: Clarinha e Ernesto amavam-se.

Não era recente esse amor: datava de dois anos. De três em três meses Ernesto pedia ao velho a mão da prima, e o velho recusava-lhe dizendo que não dava a filha a quem não tinha eira nem beira. O moço não pôde arranjar um emprego, apesar de todos os esforços; mas no fim do período regular de três meses voltava à carga para receber a mesma recusa.

A última vez que Ernesto renovou o pedido, o pai de Clarinha respondeu que se lhe ouvisse mais falar nisso fechava-lhe a porta. Proibiu à filha que falasse ao primo, e comunicou tudo à irmã, que julgou oportuna a ocasião para obrigá-lo a suspender a assinatura do teatro lírico.

Ir à casa de Clarinha sem poder falar-lhe era cruel para o jovem Ernesto. Ernesto, portanto, retirou-se amigavelmente. No fim de algum tempo voltou declarando estar curado. Pede a fidelidade que manifeste neste ponto ser a declaração de Ernesto a mais séria do mundo. O pai acreditou, e tudo voltou ao seu antigo estado; sim, ao seu antigo estado, digo bem, porque o amor que Ernesto cuidara extinto reviveu à vista da prima. Quanto a esta, ausente ou presente, nunca esqueceu o amante. Mas a vigilância prudente do pai pôs os nossos dois heróis de sobreaviso, e ambos passaram a amar em silêncio.

Foi pouco depois disto que apareceu Valentim em casa de Clarinha. Aqui devo eu fazer notar aos leitores desta história, como ela vai seguindo suave e honestamente, e como os meus personagens se parecem com todos os personagens de romance: um velho maníaco; uma velha impertinente, e amante platônica do passado; uma moça bonita apaixonada por um primo, que eu tive o cuidado de fazer pobre para dar-lhe maior relevo, sem todavia decidir-me a fazê-lo poeta, em virtude de acontecimentos que se hão de seguir; um pretendente rico e elegante, cujo amor é aceito pelo pai, mas rejeitado pela moça; enfim, os dois amantes à borda de um abismo condenados a não verem coroados os seus legítimos desejos, e ao fundo do quadro um horizonte enegrecido de dúvidas e de receios.

Depois disto, duvido que um só dos meus leitores não me acompanhe até o fim desta história, que, apesar de tão comum ao princípio, vai ter alguma coisa de original lá para o meio. Mas como convém que não vá tudo de uma assentada, eu dou algum tempo para que o leitor acenda um charuto, e entro então no segundo capítulo.

II

Se o leitor já amou imagine qual não seria o desespero de Ernesto, descobrindo um rival em Valentim. A primeira pergunta que o pobre namorado fez a si mesmo foi esta: — Ama-lo-á ela?

Para responder a esta pergunta Ernesto preparou-se a averiguar o estado do coração da moça.

Não o fez sem algum despeito. Um sentimento interior dizia-lhe que Valentim lhe era superior, e nesse caso suspeitava o pobre rapaz que o triunfo coubesse ao rival intruso. Neste estado fez as suas primeiras indagações. Ou fosse cálculo, ou natural sentimento, Clarinha, às primeiras interrogações de Ernesto, mostrou que era insensível ao afeto de Valentim. Nós podemos saber que era cálculo, apesar de me servir este ponto para eu atormentar um bocado os meus leitores. Mas Ernesto viveu na dúvida durante alguns dias.

Um dia, porém, convenceu-se de que Clarinha continuava a amá-lo como dantes, e que portanto o iludido era Valentim. Para chegar a esta convicção lançou mão de um estratagema: declarou que se ia matar.

A pobre moça quase chorou lágrimas de sangue. E Ernesto, que tinha tanta vontade de morrer como eu, apesar de amar doidamente a prima, pediu-lhe que jurasse que nunca amaria outro. A moça jurou. Ernesto quase morreu de alegria, e pela primeira vez, apesar de serem primos, pôde selar a sua paixão com um beijo de fogo, longo, mas inocente. Entretanto, Valentim embalava-se nas mais enganadoras esperanças. Cada gesto da moça (e ela os fazia por garridice) parecia-lhe a promessa mais decisiva. Todavia, nunca Valentim alcançara um momento que lhe permitisse fazer uma declaração positiva à moça. Ela sabia até onde convinha ir e não dava um passo adiante. Nesta luta íntima e secreta passaram-se muitos dias. Um dia entrou, não sei como, na cabeça de Valentim que devia sem prévia autorização pedir ao velho a mão de Clarinha. Acreditando-se amado, mas supondo que a ingenuidade da pequena era igual à beleza, Valentim julgou que tudo dependia daquele passo extremo.

O velho, que aguardava aquilo mesmo, armado de um sorriso benévolo, como um caçador armado da espingarda à espera da onça, apenas Valentim fez-lhe o pedido da mão da filha, declarou que aceitava a honra que o moço lhe fazia, e prometeu-lhe, nadando em júbilo, que Clarinha aceitaria do mesmo modo.

(continua...)

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