Por Machado de Assis (1877)
MARGARIDA
Não pretende?
SEABRA
Estás ainda o mesmo que em outro tempo?
TITO
O mesmíssimo.
MARGARIDA
Tem horror ao casamento?
TITO
Não tenho vocação. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou convencido disto.
SEABRA
Ainda te não bateu a hora.
TITO
Nem bate.
SEABRA
Mas, se bem me lembro, houve um dia em que fugiste às teorias de costume; andavas então apaixonado...
TITO
Apaixonado é engano. Houve um dia em que a providência trouxe uma confirmação aos meus instantes solitários. Meti-me a pretender uma senhora...
SEABRA
É verdade: foi um caso engraçado.
MARGARIDA
Como foi o caso?
SEABRA
O Tito viu em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa dela, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ela respondeu... que te respondeu?
TITO
Respondeu por escrito que eu era um tolo e me deixasse daquilo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era própria. Voltei atrás e nunca mais amei.
MARGARIDA
Mas amou naquela ocasião?
TITO
Não sei se era amor, era uma coisa... Mas note, isto foi há uns bons cinco anos. Daí para cá ninguém mais me fez bater o coração.
SEABRA
Pior para ti.
TITO
Eu sei! Se não tenho os gozos intensos do amor, não tenho nem os dissabores nem os desenganos. É já uma grande fortuna!
MARGARIDA
No verdadeiro amor não há nada disso...
TITO
Não há? Deixemos o assunto; eu podia fazer um discurso a propósito, mas prefiro...
SEABRA
Ficar conosco? Está sabido.
TITO
Não tenho essa intenção.
SEABRA
Mas tenho eu. Hás de ficar.
TITO
Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança...
SEABRA
Pois manda contra-ordem. Fica comigo!
TITO
Insisto em não perturbar a tua paz.
SEABRA
Deixa-te disso!
MARGARIDA
Fique!
TITO
Ficarei.
MARGARIDA
E amanhã depois de ter descansado, há de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.
TITO
Não há segredo. O que há é isto. Entre um amor que se oferece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete. A propósito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temerária que tenho visto... (a Margarida) Sabe o que é uma casca?
MARGARIDA
Não.
TITO
Pois eu lhe explico.
SEABRA
Aí chega a Emília.
Cena III
Os mesmos, EMÍLIA e o CORONEL
MARGARIDA
(indo ao fundo)
Viva, Senhora ingrata, há três dias...
EMÍLIA
E a chuva?
CORONEL
Minha Senhora, Sr. Seabra...
SEABRA
(a Emília)
D. Emília, vem achar-me na maior satisfação. Tornei a ver um amigo que há muito andava em viagem. Tenho a honra de lho apresentar: é o Sr. Tito Freitas.
TITO
Minha Senhora! (Emília fita-lhe os olhos por algum tempo procurando recordar-se; Tito sustenta o olhar de Emília com a mais imperturbável serenidade)
SEABRA
(apresentando)
O Sr. Aleixo Cupidov, coronel do exército russo; o Sr. Tito Freitas... Bem... (indo à porta da casa) Tragam cadeiras...
EMÍLIA
(a Margarida)
Pois ainda hoje não viria se não fosse a obsequiosidade do Sr. Coronel...
MARGARIDA
O Sr. Coronel é uma maravilha. (chega um fâmulo com cadeiras, dispõe-nas e sai)
CORONEL
Nem tanto, nem tanto.
EMÍLIA
É, é. Eu só tenho medo de uma coisa; é que suponham que me acho contratada para vivandeira para o exército russo...
CORONEL
Quem suporia?
SEABRA
Sentem-se, nada de cerimônias.
EMÍLIA
Sabem que o Sr. Coronel vai fazer-me um presente?
SEABRA
Ah!...
MARGARIDA
O que é?
CORONEL
É uma insignificância, não vale a pena.
EMÍLIA
Então não acertam? É um urso branco.
SEABRA e MARGARIDA
Um urso!
EMÍLIA
Está para chegar; mas só ontem é que me deu notícia...
TITO
(baixo a Seabra)
Com ele faz um par.
MARGARIDA
Ora, um urso!
CORONEL
Não vale a pena. Contudo mandei dizer que desejava dos mais belos. Ah! não fazem idéia do que é um urso branco! Imaginem que é todo branco!
TITO
Ah!...
CORONEL
É um animal admirável.
TITO
Eu acho que sim. (a Seabra) Ora vê tu, um urso branco que é todo branco! (baixo) Que faz este sujeito?
SEABRA
(baixo)
Namora a Emília, mas sem ser namorado.
TITO
(idem)
Diz ela?
SEABRA
(idem)
E é verdade.
EMÍLIA
(respondendo a Margarida)
Mas por que não me mandaste dizer? Dá-se esta, Sr. Seabra; então faz-se anos nesta casa e não me mandam dizer?
MARGARIDA
Mas a chuva?
EMÍLIA
Anda lá, maliciosa! Bem sabes que não há chuva em casos tais.
SEABRA
Demais fez-se a festa tão à capucha!
EMÍLIA
Fosse o que fosse, eu sou de casa.
TITO
O coronel está com licença, não?
(continua...)
ASSIS, Machado de. As forças caudinas. In: ___. Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicado originalmente em 1877