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#Contos#Literatura Brasileira

A Chave

Por Machado de Assis (1880)

O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos; tinha já luz bastante para ler as notícias; mas não o fazia nunca antes de voltar a filha do banho. Isto por duas razões. Era a primeira a própria afeição de pai; apesar da confiança na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou simplesmente boiava "como uma náiade", acrescentava ele se falava disso a algum amigo.

Acresce que o mar naquela manhã estava muito mais bravio que de costume; a ressaca era forte; os buracos da praia mais fundos; o medo afastava vários banhistas habituais. — Não te demores muito, disse o major, quando a filha entrou; toma cuidado. Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça.

— Hoje o bicho não está bom, ponderou um banhista ao lado de

Marcelina, um homem maduro, de suíças, ar aposentado.

— Parece que não, disse a moça; mas para mim é o mesmo.

— O major continua a não gostar d’água salgada? perguntou uma senhora. — Diz que é militar de terra e não do mar, replicou Marcelina, mas eucreio que papai o que quer é ler o Jornal à vontade.

— Podia vir lê-lo aqui, insinuou um rapaz de bigodes, dando uma grande risada de aplauso a si mesmo.

Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surdiu fora, com as mãos sacudiu os cabelos. O sol, que já então aparecera, alumiava-a nessa ocasião, ao passo que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de água. Foi assim que a viu, pela primeira vez, com os cabelos úmidos, e a flanela grudada ao busto — ao mais correto e virginal busto daquelas praias —, foi assim que pela primeira vez a viu o Bastinhos — o Luís Bastinhos —, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro banho no Flamengo.

CAPÍTULO II

A ocasião é a menos própria para apresentar-lhes o sr. Luís Bastinhos; a ocasião e o lugar. O vestuário então é impropriíssimo. Ao vê-lo agora, a meio-busto, nem se pode dizer que tenha vestuário de nenhuma espécie. Emerge-lhe a parte superior do corpo, boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça é que não precisa dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. Não há cabeleireiro, nem óleo, nem pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrário, a pressão fisionômica de Luís Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marítimo. Talvez perca, quando se pentear. Quanto ao bigode, fino e curto, os pingos d’água que ora lhe escorrem não chegam a diminuí-lo; não chegam sequer a ver-se. O bigode persiste como dantes.

Não o viu Marcelina, ou não reparou nele. O Luís Bastinhos é que a viu, e mal pôde disfarçar a admiração. O major Caldas, se os observasse, era capaz de casá-los, só para ter o gosto de dizer que unia uma náiade a um tritão. Nesse momento a náiade repara que o tritão tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e bóia. Mas o tritão é teimoso, e não lhe tira os olhos de cima.

"Que importuno!" diz ela consigo.

— Olhem uma onda grande, brada um dos conhecidos de Marcelina. Todos se puseram em guarda, a onda enrolou alguns, mas passou sem maior dano. Outra veio e foi recebida com um alarido alegre; enfim veio uma mais forte, e assustou algumas senhoras. Marcelina riu-se delas.

— Nada, dizia uma; salvemos o pêlo; o mar está ficando zangado.

— Medrosa! acudiu Marcelina.

— Pois sim...

— Querem ver? continuou a filha do major. Vou mandar embora o moleque. — Não faça isso, D. Marcelina, acudiu o banhista de ar aposentado. — Não faço outra cousa. José, vai-te embora.

— Mas, nhanhã...

— Vai-te embora!

O José ainda esteve alguns segundos, sem saber o que fizesse; mas, parece que entre desagradar ao pai ou à filha, achou mais arriscado desagradar à filha, e caminhou para terra. Os outros banhistas tentaram persuadir à moça que devia vir também, mas era tempo baldado. Marcelina tinha a obstinação de um enfant gâté. Lembraram alguns que ela nadava como um peixe, e resistira muita vez ao mar.

— Mas o mar do Flamengo é o diabo, ponderou uma senhora. Os banhistas pouco a pouco foram deixando o mar. Do lado de terra, o major Caldas, de pé, ouvia impaciente a explicação do moleque, sem saber se o devolveria à água ou se cumpriria a vontade da filha; limitou-se a soltar palavras de enfado.

— Santa Maria! exclamou de repente o José.

— Que foi? disse o major.

O José não lhe respondeu; atirou-se à água. O major olhou e não viu a filha. Efetivamente, a moça, vendo que no mar só ficava o desconhecido, nadou para terra, mas as ondas tinham-se sucedido com freqüência e impetuosidade. No lugar da arrebentação foi envolvida por uma; nesse momento é que o moleque a viu.

— Minha filha! bradou o major.

(continua...)

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