Por Machado de Assis (1885)
Não explico a sensação que tive; lembra-me que foi de incômodo. Essa palavra súbita, cordial e franca, encerrando todas as energias do amor, lacerou-me as orelhas como uma sílaba aguda que era. Que outra esperava, e que outra queria' senão essa? Não a pedira, não vinha interceder por um e por outro? Criatura espiritual e neutra, cabia-me tão-somente alegrar-me com a declaração da moça, aprová-la, e santificá-la ante Deus e os homens. Que incômodo era então esse? que sentimento espúrio vinha mesclar-se à minha caridade? Que contradição? que mistério? Todas essas interrogações surgiram do fundo de minha consciência, não assim formuladas, com a sintaxe da reflexão remota e fria, mas sem liame algum, vagas, tortas e obscuras.
Já se terá entendido a realidade. Também eu amava a menina. Como era padre, e nada me fazia pensar em semelhante cousa, o amor insinuou-se-me no coração à maneira das cobras, e só lhe senti a presença pela dentada de ciúme.
A confissão dele não me faz mal; a dela é que me doeu e me descobriu a mim mesmo. Deste modo, a causa íntima da proteção que eu dava à pobre moça era, sem o saber, um sentimento especial. Onde eles viam um simples protetor gratuito existia um homem que, impedido de a amar na terra, procurava ao menos fazê-la feliz com outro. A consciência vaga de um tal estado deu-me ainda mais força para tentar tudo.
CAPÍTULO V
Falei a dona Antônia no dia seguinte. Estava disposto a pedir-lhe uma conversação particular; mas foi ela mesma que veio ter comigo, dizendo que durante a minha moléstia tinha acabado umas alfaias, e queria ouvir a minha opinião; estavam na sacristia. Enquanto atravessávamos a sala e um dos corredores que ficavam ao lado do pátio central, ia-lhe eu falando, sem que ela me prestasse grande atenção. Subimos os três degraus que davam para uma vasta sala calçada de pedra, e abobadada. Ao fundo havia uma grande porta, que levava ao terreiro e à chácara; à direita ficava a da sacristia, à esquerda outra, destinada a um ou mais aposentos, não sei bem.
Naquela sala achamos Lalau e o sineiro, este sentado, ela de pé.
O sineiro era um preto velho e doudo. Não fazia mais que tocar o sino da capela, para a missa, aos domingos. O resto do tempo vivia calado ou resmungando. Ninguém lhe falava, embora fosse manso. Lalau era a única, entre todos, parentes, agregados ou fâmulos, que ia conversar com ele, interrogá-lo, escutá-lo, pedir-lhe histórias. E ele contava-lhe histórias —muito compridas, sem sentido algumas, outras quase sem nexo, raminiscências vagas e embrulhadas, ou sugestões do delírio.
Era curioso vê-los. Lalau perdia a inquietação; ficava séria e tranqüila, durante dez, quinze, vinte minutos, a escutá-lo. O Gira (nunca lhe conheci outro nome) alegrava-se ao vê-la. Com a razão, perdera a convivência dos mais. Vivia entregue aos pensamentos solitários, mergulhado na inconsciência e na solidão. A moça representava aos olhos dele alguma cousa mais do que uma simples criatura, era a sociedade humana, e uma sombra de sombra da consciência antiga. Ela, que o sentia, dava-lhe essa curta emersão do abismo, e uma ou duas vezes por semana ia conversar com ele.
D. Antônia parou. Não contava com a moca ali, ao pé da porta da sacristia, e queria falar-me em particular, como se vai ver. Compreendi-o logo p
Baixar texto completo (.txt)ASSIS, Machado de. Casa Velha. A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, Rio de Janeiro, 1885-1886.