Por Machado de Assis (1885)
— Estive pensando que essa moça é superior à sua condição, disse eu. A Senhora D. Antônia falou-me de outra agregada que, há quatro anos, foi ali seduzida por um saltimbanco. Não creio que esta faça a mesma cousa, porque, apesar da idade e do ar pueril, acho-lhe muito juízo; creio antes que escolherá marido, e viverá honestamente. Mas é aqui 0 ponto. O marido que ela escolher pode bem ser da mesma condição que ela, mas muito inferior moralmente, e será um mau casamento.
Félix dividia os olhos entre mim e a ponta do sapato. Quando acabei, achou-me razão. — Não lhe parece? perguntei.
—Decerto.
— Bem sei que é esquisito meter-me assim em cousas alheias...
— Nada é alheio para um bom padre como o senhor, disse ele com gravidade.
— Obrigado. Confesso-lhe, porém, que essa moça excitou a minha piedade. Já lhe disse: tem cousas de criança, mas não é criança. Entregá-la a um homem vulgar, que não a entenda, é fazê-la padecer. Não sei se a Senhora D. Antônia fez bem em apurar tanto a educação que lhe deu, e os hábitos em que a faz educar; não porque ela não se acomode a tudo, como um bom coração que é, mas porque, apesar disso, há de custar-lhe muito baixar a outra vida. Olhe que não é censurar...
— Pelo amor de Deus! sei o que é. Pensa que eu não estou com a sua opinião? Estou e muito. Mamãe é que pode ser que não esteja conosco. Já tem pensado em várias pessoas, segundo me consta, e de uma delas chegou a falar-me; era o Vitorino, filho do segeiro que nos conserta as carruagens. Ora veja!
—-Não conheço o Vitorino.
— Mas pode imaginá-lo.
Olhei para ele um instante. Pareceu-me que estava de boa-fé; mas era possível que não, e cumpria arrancar-lhe a verdade. Inclinei-me, e disse que já tinha um noivo em vista, muito superior ao Vitorino.
—Quem? perguntou ele inquieto.
— O senhor.
Félix teve um sobressalto, e ficou muito vermelho.
— Desculpe-me se lhe digo isto, mas é a minha opinião, e não vale mais que opinião. Há grande diferença social entre um e outro, mas a natureza, assim como a sociedade a corrige, também às vezes corrige a sociedade. Compensações que Deus dá. Acho-os dignos um do outro; os sentimentos dela e os seus são da mesma espécie. Ela é inteligente, e o que lhe poderia faltar em educação já sua mãe lho deu. Teria alguma dúvida em casar com ela?
Félix estendeu-me a mão.
—Não lhe nego nada, o senhor já adivinhou tudo, disse ele. E continuou, depois de haver-me apertado a mão: Que dúvida poderia ter? Ela merece um bom marido, e eu acho que não seria de todo mau. Resta ainda um ponto.
—Que ponto?
Hesitou um instante, bateu com a mão nos joelhos duas ou três vezes, olhando para mim, como querendo adivinhar as minhas intenções.
— Resta mamãe, disse finalmente.
—Opõe-se?
—Creio que sim.
—Mas não é certo.
—Há de ser certo. Digo-lhe tudo, como se falasse a um amigo velho de nossa casa. Mamãe percebeu, como o senhor, que nós gostamos um do outro, e opõe-se. Não o disse ainda francamente, mas sinto que, em caso nenhum, consentirá no nosso casamento. Esse Vitorino é um candidato inventado para separá-la de mim; e assim outros em que sei que já pensou. Estou que Lalau resistirá, mas temo que não seja por muito tempo. . . Não se lembra que mamãe já lhe pediu uma vez para levar-me à Europa? Era com o mesmo fim de afastar-me, distrair-me, e casá-la.
—Acha isso?
—Com certeza.
—Como explica então que ela continue a ter tanto amor à pequena?
— O senhor não conhece mamãe. E um coração de pomba, e gosta dela como se fosse sua filha. Mas coração é uma cousa, e cabeça é outra. Mamãe é muito orgulhosa em cousas de família. Seria capaz de velar uma semana ou duas, à cabeceira de Lalau, se a visse doente; mas não consentiria em casá-la comigo. São cousas diferentes.
— Devia ser isso mesmo, repliquei alguns instantes depois. E murmurei baixinho as palavras que ela ouvira ao avô, no tempo do rei e repetira mais tarde no paço: "Uma Quintanilha não trame nunca!"
—Nem treme, nem desce, concluiu o rapaz sorrindo. ~ o sentimento de mamãe.
— Seja como for, nada está perdido; cuido que arranjaremos tudo. Deixe o negócio por minha conta.
Tinha o plano feito. Se houvesse reconhecido que as intenções dele eram impuras, ajudaria a mãe e trataria de casar a menina com outro. Sabendo que não, ia ter com a mãe para arrancar-lhe o consentimento em favor do filho. Três dias depois, voltando à Casa Velha, achei nos olhos de Lalau alguma cousa mais particular que a alegria da amiga, achei a comoção da namorada. Era natural que ele lhe tivesse contado a minha promessa. Não lho perguntei; mas disse-lhe rindo que parecia ter visto passarinho verde. Toda a alma subiu-lhe ao rosto, e a moca respondeu com ingenuidade, apertando-me a mão:
—Vi.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa Velha. A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, Rio de Janeiro, 1885-1886.