Por Machado de Assis (1883)
Ou me engano, ou isto quer dizer que se trata de impedir a divulgação de certa ordem de produtos, a pretexto de que eles fazem mal à gente. Não digo que façam bem; mas não vamos cair de um excesso em outro.
Os homens reunidos em sociedade (relevem-me este tom meio pedante) estão virtual e tacitamente obrigados a obedecer às leis formuladas por eles mesmos pare a conveniência comum. Há, porém, leis que eles não impuseram, que acharam feitas, que precederam as sociedades, e que se hão de cumprir, não por uma determinação de jurisprudência humana, mas por uma necessidade divina e eterna. Entre essas, e antes de todas figure a da luta pela vida, que um amigo meu nunca diz senão em inglês: struggle for life.
Se a luta pela vida é uma lei verdadeira e só um louco poderá negá-lo, como há de lutar um molhadista em terra de Molhadistas? Sim, se este nosso Rio de Janeiro tivesse apenas uns vinte molhadistas, é claro que venderiam os mais puros vinhos do mundo,—e por bom preço,—o que faria enriquecer depressa, pois não os havendo mais baratos, iriam todos comprá-los a eles mesmos.
Eles, porém, são numerosos, são quase inumeráveis, e têm grandes encargos sobre si; pagam aluguéis de casa, caixeiros, impostos, pagam muita vez o pato, e hão de pagar no outro mundo os pecados que cometerem neste, e tudo isso lutando, não contra cem, mas contra milhares de rivais. Pergunto: o que é que lhes fica a um canto da gaveta? Não iremos ao ponto de exigir que eles abram um armazém só para o fim de perder. O mais que poderíamos querer é que não o abrissem; mas uma vez aberto, entram na pura fisiologia universal; e tanto melhor se a química os ajuda.
Também matar é um crime. Mas as leis sociais admitem casos em que é ilícito matar, defendendo-se um homem a si próprio. Bem, o molhadista do n ° 40, que falsifica hoje umas vinte pipas de vinho, que outra coisa fez senão defender-se a si mesmo, contra o molhadista do n.° 34 que falsificou ontem dezessete? Struggle for life, como diz o meu amigo.
Depois, façamos um pouco de filosofia Pangloss, penetremos nas intenções da Providência. Se com drogas químicas se pode chegar a uma aparência de vinho, não parece que este resultado é legítimo, lógico e natural? Acaso a natureza é uma escola de crimes? E dado mesmo que um tal vinho seja danoso à saúde pública, não pode acontecer que seja útil à virtude pública, levando os homens a abater-se? E, porventura, a virtude merece menos que a saúde? Não são ambas a mesma coisa, com a diferença que a virtude é ainda superior? Não entrará tudo isso nos cálculos do céu?
Eu bem sei que era melhor não vender nada, nem vinho puro, nem vinho falsificado, e viver somente daquele produto a que se refere o meu amigo Barão de. Capanema, no Diário do Brasil de hoje: "Alguns milhões de homens livres no Brasil (escreve ele) vivem do produto da pindaíba. .." Realmente eu conheço um certo número que não vive de outra coisa. E quando o escritor acrescenta: "...pindaíba do tatu que arrancam do buraco. . ." penso que elude a alguns níqueis de mil-réis que têm saído da algibeira de todos nós.
Era melhor; mas isto mesmo pode dar lugar a falsificações. Nem todas as pindaíbas são legítimas. E a própria química finge algumas, por meio das lágrimas que são, em tais casos, química verdadeira.
Talvez por isso tudo, é que um cavalheiro, que não sei quem seja mas que more na Travessa do Maia, lembrou-se de fazer este anúncio: "Brasão de armas, composição de cartas da nobreza, árvore genealógica, todo e qualquer trabalho heráldico, em pergaminho, pintura em aquarela e dourados, letras góticas, trata-se na travessa etc."
Esse cidadão não viverá na pindaíba, nem lhe dirão que fez vinho nos fundos da fábrica. Não fez vinho, fez historia, fez gerações, à escolha, latinas ou góticas. E não se pense que é oficio de pouca renda. Na mesma case convidam-se as senhoras que se dedicam à arte de pintura e quiseram trabalhar. Se ainda acharem que há aí muita química, cito-lhes física, cito-lhes um "grande cartomante" (sic) da Rua da Imperatriz, que dá consultas das 7 às 9 da manhã. Física, e boa física.
Que querem? é preciso comer. Cartomancia, heráldica, pindaíba de tatu, ou vinhos confeccionados no fundo do armazém, tudo isso vem a dar na lei de Darwin.
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[29 outubro]
JÁ tínhamos Lafaiete, ministro de Estado e presidente do Conselho, citando Molière na Câmara. Não é tudo. Para citá-lo bastam florilégios e o incomensurável Larousse, nelas o nosso ex-ministro leva o desplante ao ponto de o ler e reler. Felizmente, a indignação parlamentar e pública lavou a Câmara e o país de tão grande mancha, e podemos esperar com tranqüilidade o juízo da história.
Agora temos Taunay, em vésperas de eleição, cuidando das músicas do Padre José Maurício, e citando (custa-me dizê-lo), citando Haydn e Mozart.
Não ignoro que tudo isto de Taunay e Lafaiete, afinal de contas, são francesias de nomes e de cabeças. Ouviram dizer que em França alguns deputados lêem os clássicos, e imaginaram transportar o uso para aqui.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Balas de estalo. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1883–1886.