Por Machado de Assis (1872)
Não podia o major Brás deixar incólume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloqüente major pediu licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do orador, e o auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe iam cair da boca.
– O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha ousadia; não vos fala o talento, senhores, fala-vos o coração. Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre tenente-coronel veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha voz nada adiantaria...
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto é, cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da seguinte maneira:
– O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do espírito Santo têm havido nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o tenente-coronel Veiga, honra da classe a que pertence, e a glória do partido a que se filiou...
– E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.
– Nem outra coisa era de esperar de V. Exa., disse o orador mudando de voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e cinco minutos com grande mágoa do padre Maciel, que namorava de longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que estava ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco mais ou menos assim:
– Eu falaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário, de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e não vos dissesse em linguagem tosca, sim, (sinais de desaprovação), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre tenente-coronel Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde de S. Exa.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenente coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:
– Os elogios que me acha de fazer o distinto major Brás, são verdadeiros favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores; devolvo-os intatos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava, ninguém reparou nas atenções que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal; Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que Soares via os ataques do adversário. Não é milagre; Soares também interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença; talvez o desdém, com que tratava o filho do comendador.
– Nem eu, nem ele, dizia consigo o pretendente.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta transformação. Fazendo de si próprio melhor idéia que o rival, Camilo dizia consigo:
– Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho do Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há para que eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar.
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e das palavras que lhe dissera.
– Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos e vivis. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a descobrir naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia conhecer; recobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso sujeito.
Entretanto Camilo freqüentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que lhe podia para comunicar à bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali dentro morava um coração de neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agora deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.
CAPÍTULO VI
REVELAÇÃO
(continua...)
ASSIS, Machado de. A parasita azul. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, ano 12, n. 6-9, jun.-set. 1872. (Publicado em folhetins).