Por Machado de Assis (1885)
E, rápida, como passarinho, deixou-me outra vez só. Desta vez não tornei às notas; fiquei passeando na longa sala, custeando as estantes, detendo-me para mirar os livros, mas realmente pensando em Lalau. A simpatia que me arrastava para ela complicava-se agora de veneração, diante daquela explosão de sensibilidade, que estava longe de esperar da parte de uma criatura tão travessa e pueril. Achei nessa saudade da mãe, tão viva, após longos anos, um documento de grande valor moral, pois a afeição que ali lhe mostravam, e o próprio contacto da opulência podiam naturalmente tê-la amortecido ou substituído. Nada disso; Lalau daria tudo para viver ao pé da mãe! Tudo? Pensei também no silêncio que me recomendou, medrosa de que a achassem ingrata, e este rasgo não me pareceu menos valioso que o outro; era claro que ela compreendia as induções possíveis de uma dor que persiste, a despeito dos carinhos com que cuidavam tê-la eliminado, e queria poupar aos seus benfeitores o amargor de crer que empregavam mal o beneficio.
Pouco depois chegou o Félix. Veio falar-me, disse-me que tinha uma boa notícia, que ia mudar de roupa e voltava. Vinte minutos depois estava outra vez comigo, e confiava-me o plano de fazer-se eleger deputado.
— Até agora não tinha resolvido nada, mas acho que devo fazê-lo. Sigo a carreira de papai. Que lhe parece. Reverendíssimo?
— Parece-me bem. Todas as carreiras são boas, exceto a do pecado. Também eu algum tempo, andei com fumaças de entrar na Câmara; mas não tinha recursos nem alianças políticas; desisti do emprego. E assim foi bom. Sou antes especulativo que ativo; gosto de escrever política, não de fazer política. Cada qual como Deus o fez. O senhor, se sair a seu pai, é que há de ser ativo, e bem ativo. A cousa é para breve?
Não me respondeu nada; tinha os olhos fora dali. Mas logo depois, advertido pelo silêncio:
— O quê? Ah! não é para já; estou arranjando as cousas. Estive com alguns amigos de papel, e parece que há furo. Como sabe há muitos desgostos contra o Regente. . . Se o imperador já tivesse a idade de constituição é que era bom; ia-se embora o Regente e o resto. . . Pois é verdade, creio que sim. . . Entretanto, nunca tinha pensado nisto seriamente; mas as cousas são assim mesmo. . . Que acha?
— Acho que fez bem.
— Em todo o caso, peco-lhe segredo; não diga nada a mamãe.
— Crê que ela se oponha?
—Não; mas. . . pode ser que não se alcance nada, e para lhe não dar uma esperança que pode falhar... E só isto.
Era plausível a explicação; prometi-lhe não dizer nada. Creio que falamos ainda de política, e da política daqueles últimos dez anos, que não era pouca nem plácida. Félix não tinha certamente um plano de idéias, e apreciações originais; através das palavras dele, apalpava eu as fórmulas e os juízos do círculo ou das pessoas com quem ele lidava para o fim de encetar a carreira. Agora, a particularidade dele era a clareza e retidão de espírito precisas para só recolher do que ouvia a parte sã e justa, ou, pelo menos, a porção moderada. Nunca andaria nos extremos, qualquer que fosse o seu partido.
—Trabalhou muito hoje? perguntou-me ele quando nos preparávamos para jantar. — Pouco; tive uma visita.
— Mamãe?
— Não; outra pessoa, Lalau, não é assim que lhe chamam? Esteve aqui uma meia hora. Podia estar três ou quatro horas que eu não dava por isso. Muito engraçada!
—Mamãe gosta muito dela, disse ele.
— Todos devam gostar dela; não é só engraçada, é boa, tem muito bom coração. Digo-lhe que pus de lado o Imperador, os Andradas, os Sete de Abril, pus tudo de lado para ouvi-la falar. Tem cousas de criança, mas não é criança.
— Muito inteligente, não acha?
—Muito.
—De que falaram?
— De mil cousas, talvez duas mil; com ela é difícil contar os assuntos; vai de um para outro com tal rapidez que, se a gente não toma cuidado, cai no caminho. Sabe que idéia tive aqui, olhando para ela?
—Que foi?
—Casá-la.
—Casá-la? perguntou ele vivamente.
—Casá-la eu mesmo;-ser eu o padre que a unisse ao escolhido do seu coração, quando ela o tivesse. . .
Félix não disse nada, sorriu acanhadamente, e, pela primeira vez, suspeitei que as intenções do rapaz podiam ser mui outras das que lhe supunha até então, que haveria nele, porventura em vez de um marido, um sedutor. Não alcanço exprimir como me doeu esta suposição. Ia tanto para a moça, que era já como se fosse minha irmã, o meu próprio sangue, que um estranho ia corromper e prostituir. Quis continuar a falar, para escrutar-lhe bem a alma; não pude, ele esquivou-se, e fiquei outra vez só. Nesse dia retirei-me um pouco mais cedo. D. Antônia achou-me preocupado, eu disse-lhe que tinha dor de cabeça.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Casa Velha. A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, Rio de Janeiro, 1885-1886.