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#Crônicas#Literatura Brasileira

Bons Dias

Por Machado de Assis (1888)

No ano de l913, por exemplo, abriam-se os fonógrafos, eram as formalidades necessárias, e os nossos filhos ouviriam a própria voz de algum orador atual discutir o orçamento da receita geral do Império: . . . E, perguntei ao nobre ministro, sabe que faleceu o tabelião de Ubatuba! Esse homem padecia de uma afecção cardíaca, mas ia vivendo; tinha mulher e quatro filhos,—o mais velho dos quais não passava de sete anos. Note S. Ex.a que o tabelião nem era filho da província; nasceu em Cimbres, e de uma família respeitável; um dos irmãos foi capitão do l.o regimento de cavalaria, e esteve em tororó a sua fé de ofício e das mais honrosas que conheço, lê-las-á daqui a pouco; mas, como dizia, o tabelião de Ubatuba ia vivendo, com a sua afecção cardíaca e dois dedos de menos, circunstância esta que lhe tornava ainda mais penoso escrever, mas à qual se acomodava pela necessidade. A perda de dois dedos originou-se de um fato doméstico, com o qual nada tem esta Câmara, posto que, ainda aí se possa ver um exemplo, não direi raro, mas precioso, das virtudes daquele homem. Chovia, uma das cunhadas do tabelião. . . Mas eu pretiro chegar ao caso principal, a entrada do alferes fobias. Senhores, êste alferes . . .

E deste modo, discursos que hoje não se lêem, chegariam à posteridade com a frescura da própria cor do orador. Os jornais do tempo os reproduziriam, os sociologistas viriam lê-los e analisá-los, e assim os lingüistas, os cronistas, e outros estudiosos, com vantagem para todos, começando talvez por nós,— ingratos!

Boas noites.

[80]

[28 outubro]

BONS DIAS!

Viva a galinha com a sua pevide. Vamos nós vivendo com a nossa policia. Não será superior, mas também não é inferior à policia de Londres, que ainda não pôde descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que é a primeira do universo. O assassino, para maior ludibrio da autoridade, mandou lhe cartões pelo correio.

Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposentá-la nos nossos discursos e citações. Neste particular, tivemos a principio a mania francesa e revolucionária; folheiem os Anais da Constituinte, e verão. Mais tarde ficou a França constitucional e a Inglaterra: os nomes de Pitt, Russel. Canning, Bolingbrook, mais ou menos intactos, caíram da tribuna parlamentar. E frases e máximas! Até 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo inglês: "A Câmara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa.

"Justamente o que a nossa Câmara faz, quando quer, dizia eu comigo.

Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a Itália. Basta advertir que, há pouco tempo, lá estiveram (ou ainda estão) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, só por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados é irlandês; mas se algum vier a sê-lO, juro que será mais bem tratado. E, comparando tanta polícia para pegar deputados com tão pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico, a conclusão não pode ser senão a do começo: — Viva a galinha com a sua pevide...

Aqui interrompe-me o leitor: — Já vejo que é nativista! E eu respondo que não sei bem o que sou O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo senador Taunay. Como eu dissesse que não aceitava o projeto, integralmente, alguém tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi:

— Não sei bem o que sou. Se nativista é algum bicho feio, paciência; mas, se quer dizer exclusivista, não é comigo.

Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas.

Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está. é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor. acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos? Quem não concordará comigo (para só falar de mortos), que é muito melhor ter como regente, por ser ministro do império, um Guizot OU um Palmerston, do que um ex-ministro (Deus lhe fale na alma!) que não tinha este olho?

Mas o projeto traz outras cousas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dous anos, ou até de um. Excluí-los da lei é impossível. Ai fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo.

Outra conseqüência. O digno Senador Tannay deseja a imigração em larga escala. Prefeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dous anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida.

Em suma,—e é o principal defeito que lhe acho,—este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre. é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dous sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual.

(continua...)

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