Por Machado de Assis (1886)
Machado de Assis (1839–1908), um dos maiores nomes da literatura brasileira, publicou Astúcias de marido em 1886, no Jornal das Famílias. O conto explora, com ironia e sutileza, o ciúme, o casamento e os jogos de poder nas relações amorosas. A narrativa revela o olhar agudo e psicológico do autor sobre as fraquezas humanas, antecipando traços do Realismo machadiano.
I
Não me admira, dizia um poeta antigo, que um homem case uma vez; admira-me que, depois de viúvo, torne a casar. Valentim Barbosa achava-se ainda no primeiro caso e já compartia a admiração do poeta pelos que se casavam duas vezes. Não é que a mulher dele fosse um dragão ou uma fúria, uma mulher como a de Sócrates; ao contrário, Clarinha era meiga, dócil e submissa, como uma rola; nunca abrira os lábios para exprobrar ao marido uma expressão ou um gesto. Mas que faria então a desgraça de Valentim? É o que eu vou dizer aos que tiverem a paciência de ler esta história até o fim.
Valentim fora apresentado em casa de Clarinha pelo correspondente de seu pai no Rio de Janeiro. Era um rapaz de vinte e oito anos, formado em direito, mas suficientemente rico para não usar do título como meio de vida.
Era um belo rapaz, no sentido mais elevado da palavra. Adquirira nos campos riograndenses uma robustez que lhe ia bem com a beleza máscula. Tinha tudo quanto podia seduzir uma donzela: uma beleza varonil e uma graça de cavaleiro. Tinha tudo quanto podia seduzir um pai de família: nome e fortuna.
Clarinha era então uma interessante menina, cheia de graças e prendas. Era alta e magra, não da magreza mórbida, mas da magreza natural, poética, fascinante; era dessas mulheres que inspiram o amor de longe e de joelhos tão impossível parece que se lhes possa tocar sem profanação. Tinha um olhar límpido e uma fisionomia insinuante. Cantava e tocava piano, com a inspiração de uma musa.
A primeira vez que Valentim a viu, Clarinha saía da cama, onde a detivera, durante um mês, uma febre intermitente. Um rosto pálido e uns olhos mórbidos deixaram logo o advogado sem saber de si, o que prova que não havia nele uma alma de lorpa. Clarinha não se inspirou de nada; gostava do rapaz, como o rapaz gostara de outras mulheres; achou-o bonito; mas não sentiu amor por ele.
Valentim não teve tempo nem força para analisar a situação. Ficou abalado pela menina e decidiu-se a apresentar-lhe as suas homenagens. Não há ninguém que tome mais facilmente intimidade do que um namorado. Valentim, aos primeiros oferecimentos do pai de Clarinha, não hesitou; volveu à casa da moça e tornou-se o mais assíduo freqüentador.
Valentim conhecia a vida; metade por ciência, metade por intuição. Tinha lido o Tratado de paz com os homens, de Nicole, e reteve estas duas condições a que o filósofo de Port Royal reduz o seu sistema: não opor-se às paixões, não contrariar as opiniões. O pai de Clarinha era doido pelo xadrez e não via salvação fora do partido conservador; Valentim fustigava os liberais e acompanhava o velho na estratégia do rei e dos elefantes. Uma tia da moça detestava o império e a constituição, chorava pelos minuetos da corte e ia sempre resmungando ao teatro lírico; Valentim contrafazia-se no teatro, dançava a custo uma quadrilha e tecia loas ao regime absoluto. Enfim, um primo de Clarinha mostrava-se ardente liberal e amigo das polcas; Valentim não via nada que valesse uma polca e um artigo do programa liberal.
Graças a este sistema era amigo de todos e tinha seguro o bom agasalho. Mas daqui resultavam algumas cenas divertidas.
Por exemplo, o velho surpreendia às vezes uma conversa entre Ernesto (o sobrinho) e
Valentim a respeito de política: ambos coroavam a liberdade.
— Que é isso, meu caro? Então segue as opiniões escaldadas de Ernesto? — Ah! respondia Valentim.
— Dar-se-á caso que também pertença ao partido liberal?
— Sou, mas não sou...
— Como assim? perguntava Ernesto.
— Quero dizer, não sou mas sou...
Aqui Valentim tomava a palavra e fazia um longo discurso tão bem deduzido que contentava as duas opiniões. Dizem que é isto uma qualidade para ser ministro. Outras vezes era a tia quem o surpreendia no campo contrário, mas a habilidade de Valentim triunfava sempre.
Deste modo, concordando em tudo, nas opiniões como nas paixões — apesar das pesadas obrigações de jogar o xadrez e ouvir a velha e as histórias do outro tempo —, Valentim conseguiu na casa de Clarinha uma posição proeminente. Sua opinião tornou-se decisiva em tudo quanto concernia aos projetos do velho pai. Baile onde não fosse Valentim não ia a família. Dia em que este não fosse visitá-la podia dizer-se que corria mal.
Mas o amor caminhava ao lado da intimidade, e até por causa da intimidade. Cada dia trazia a Valentim a descoberta de uma nova prenda no objeto do seu culto. A moça estava na mesma situação do primeiro dia, mas era tão amável, tão doce, tão delicada, que Valentim, tomando a nuvem por Juno, chegou a acreditar que era amado. Talvez mesmo Clarinha não fosse completamente ingênua no engano em que fazia cair Valentim. Um olhar e uma palavra não custa, e é tão bom alargar o círculo dos adoradores!
O pai de Clarinha descobriu o amor de Valentim e aprovou-o logo antes da declaração oficial. Aconteceu o mesmo à tia. Só o primo, apenas desconfiou, declarou-se interiormente em oposição.
(continua...)
ASSIS, Machado de. Astúcias de marido. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1886.