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#Contos#Literatura Brasileira

Aurora sem Dia

Por Machado de Assis (1870)

"Aurora sem Dia" é um conto de Machado de Assis (1839-1908), publicado originalmente no Jornal das Famílias no Rio de Janeiro, entre novembro e dezembro de 1870. Posteriormente, foi reunido na coletânea Histórias da Meia-Noite (1873). O conto narra, com fina ironia, a trajetória de Luís Tinoco, um jovem e modesto empregado do foro que se convence de seu gênio poético e literário, enfrentando a descrença de seu padrinho e do Dr. Lemos. O tema é a sátira do romantismo ingênuo e do diletantismo literário da época, e a crítica à ilusão das "auroras" de glória que nunca chegam a se concretizar.

Naquele tempo contava Luís Tinoco vinte e um anos. Era um rapaz de estatura meã, olhos vivos, cabelos em desordem, língua inesgotável e paixões impetuosas. Exercia um modesto emprego no foro, donde tirava o parco sustento, e morava com o padrinho cujos meios de subsistência consistiam no ordenado da sua aposentadoria. Tinoco estimava o velho Anastácio e este tinha ao afilhado igual afeição.

Luís Tinoco possuía a convicção de que estava fadado para grandes destinos, e foi esse durante muito tempo o maior obstáculo da sua existência. No tempo em que o Dr. Lemos o conheceu, começava arder-lhe a chama poética. Não se sabe como começou aquilo. Naturalmente os louros alheios entraram a tirar-lhe o sono. O certo é que um dia de manhã acordou Luís Tinoco escritor e poeta; a inspiração, flor abotoada ainda na véspera, amanheceu pomposa e viçosa. O rapaz atirou-se ao papel com ardor e perseverança, e entre as seis horas e as nove, quando o foram chamar para almoçar, tinha produzido um soneto, cujo principal defeito era ter cinco versos com sílabas de mais e outros cinco com sílabas de menos. Tinoco levou a produção ao Correio Mercantil, que a publicou entre os a pedido.

Mal dormida, entremeada de sonhos interruptos, de sobressaltos e ânsias, foi a noite que precedeu a publicação. A aurora raiou enfim, e Luís Tinoco, apesar de pouco madrugador, levantou se com o sol e foi ler o soneto impresso. Nenhuma mãe contemplou o filho recém nascido com mais amor do que o rapaz leu e releu a produção poética, aliás decorada desde a véspera. Afigurou-se-lhe que todos os leitores do Correio Mercantil estavam fazendo o mesmo; e que cada um admirava a recente revelação literária, indagando de quem seria esse nome até então desconhecido.

Não dormiu sobre os louros imaginários. Daí a dois dias, nova composição, e desta vez saiu uma longa ode sentimental em que o poeta se queixava à lua do desprezo em que o deixara a amada, e já entrevia no futuro a morte melancólica de Gilbert. Não podendo fazer despesas, alcançou, por intermédio de um amigo, que a poesia fosse impressa de graça, motivo este que retardou a publicação por alguns dias. Luís Tinoco tragou a custo a demora, e não sei se chegou a suspeitar de inveja os redatores do Correio Mercantil.

A poesia saiu enfim; e tal contentamento produziu no poeta que foi logo fazer ao padrinho uma grande revelação.

– Leu hoje o Correio Mercantil, meu padrinho? perguntou ele.

– Homem, tu sabes que eu só lia os jornais no tempo em que era empregado efetivo. Desde que me aposentei não li mais os periódicos...

– Pois é pena! disse Tinoco com ar frio; queria que me dissesse o que pensa de uns versos que lá vêm.

– E de mais a mais versos! Os jornais já não falam de política? No meu tempo não falavam de outra coisa.

– Falam de política e publicam versos, porque ambas as coisas tem entrada na imprensa. Quer ler os versos?

– Dá cá.

– Aqui estão.

O poeta puxou da algibeira o Correio Mercantil, e o velho Anastácio entrou a ler para si a obra do afilhado. Com os olhos pregados no padrinho, Luís Tinoco parecia querer adivinhar as impressões que produziam nele os seus elevados conceitos, metrificados com todas as liberdades possíveis do consoante. Anastácio acabou de ler os versos e fez com a boca um gesto de enfado.

– Isto não tem graça, disse ele ao afilhado estupefato; que diabo tem a lua com a indiferença dessa moça, e a que vem aqui a morte deste estrangeiro?

Luís Tinoco teve vontade de descompor o padrinho, mas limitou-se a atirar os cabelos para trás e a dizer com supremo desdém:

– São coisas de poesia que nem todos entendem, esses versos sem graça, são meus. – Teus? perguntou Anastácio no cúmulo do espanto.

– Sim, senhor.

– Pois tu fazes versos?

– Assim dizem.

– Mas quem te ensinou a fazer versos?

– Isto não se aprende; traz-se do berço.

Anastácio leu outra vez os versos, e só então reparou na assinatura do afilhado. Não havia que duvidar: o rapaz dera em poeta. Para o velho aposentado era isto uma grande desgraça. Esse, ligava à idéia de poeta a idéia de mendicidade.

Tinha-lhe pintado Camões e Bocage, que eram os nomes literários que ele conhecia, como dois improvisadores de esquina, espeitorando sonetos em troca de algumas moedas, dormindo nos adros das igrejas e comendo nas cocheiras das casas grandes. Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia, Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado.

– Dou-lhe parte de que o Luís está poeta.

– Sim? perguntou-lhe o Dr. Lemos. E que tal lhe saiu o poeta?

– Não me importa se saiu mau ou bom. O que sei é que é a maior desgraça que lhe podia acontecer, porque isto de poesia não dá nada de si. Tenho medo que deixe o emprego, e fique aí pelas esquinas a falar à lua, cercado de moleques.

(continua...)

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