Letramento
O conceito de letramento ocupa posição central nos estudos da linguagem e da educação, distinguindo-se, embora não se desvincule, da noção de alfabetização. Enquanto a alfabetização se refere principalmente à aquisição do sistema de escrita alfabética e à capacidade técnica de decodificação e codificação, o letramento diz respeito à apropriação social da leitura e da escrita, em suas múltiplas funções, práticas e significados.
O letramento representa a capacidade de usar socialmente a leitura e a escrita, indo além da decodificação para incluir a compreensão, interpretação crítica e produção textual contextualmente apropriada. Trata-se de um processo complexo de apropriação social da escrita, em que se conjugam competências individuais, práticas coletivas, contextos históricos e disputas ideológicas.
O letramento, portanto, articula pelo menos quatro dimensões fundamentais:
- a cognitiva, relacionada às competências linguísticas e interpretativas;
- a social, vinculada às práticas coletivas de uso da escrita;
- a ideológica, que remete às relações de poder, valores e legitimidades; e
- a histórica, que evidencia a transformação constante das práticas discursivas.
Origem e desenvolvimento histórico do conceito[editar]
Contexto de surgimento[editar]
O conceito de letramento emergiu nos anos 1980 como resposta a uma crescente percepção de que a alfabetização tradicional - vista como mera decodificação mecânica - era insuficiente para preparar os indivíduos para as demandas sociais da leitura e escrita.
No Brasil dos anos 1980, observou-se um paradoxo: as taxas de alfabetização aumentavam, mas persistiam dificuldades relacionadas à compreensão de textos complexos, uso da escrita em contextos formais e participação crítica na sociedade letrada. Era como se as pessoas soubessem "as regras do jogo", mas não soubessem "jogar".
Antecedentes teóricos: Paulo Freire[editar]
Essa perspectiva já aparece em Paulo Freire (1989), ao insistir que alfabetizar não pode ser compreendido como um ato meramente mecânico, mas como prática de leitura de mundo. Para Freire, o acesso à palavra escrita deve estar vinculado ao exercício da cidadania e à possibilidade de intervenção crítica na realidade. Nesse sentido, sua pedagogia antecipa a concepção de letramento como processo social, cultural e político, e não apenas como aquisição técnica.
Brian Street e os modelos de letramento[editar]
Nos anos 1980, os estudos de Brian Street consolidaram essa inflexão teórica. Street (1984) propôs a distinção entre o modelo autônomo e o modelo ideológico do letramento, fundamentais para a compreensão contemporânea do conceito.
Modelo autônomo[editar]
O modelo autônomo, dominante em muitas abordagens educacionais, apresenta as seguintes características:
- Entende a escrita como um conjunto de habilidades cognitivas universais
- Assume que o domínio da escrita garantiria automaticamente avanços sociais e econômicos
- Trata o letramento como habilidade técnica neutra
- Assume efeitos cognitivos universais
- Desconsidera contextos culturais e sociais
- Crítica principal: Mascara as relações de poder inerentes às práticas letradas
Modelo ideológico[editar]
O modelo ideológico, em contraste, caracteriza-se por:
- Partir da ideia de que o letramento é sempre situado e permeado por ideologias
- Reconhecer o letramento como prática social situada
- Considerar as relações de poder e ideologia
- Valorizar os diferentes letramentos locais
- Vantagem: Oferece uma visão mais democrática e inclusiva
Como sintetiza Street (1984, p. 8), "não existe letramento em si, mas práticas de letramento, moldadas pelas estruturas de poder e pelos sistemas de significado".
O desenvolvimento no Brasil[editar]
No contexto brasileiro, Magda Soares foi responsável por difundir amplamente o conceito, destacando que o letramento é condição para o exercício pleno da cidadania e para a democratização da sociedade (Soares, 2003).
Soares (1998) definiu letramento como "o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, bem como o resultado da ação de usar essas habilidades em práticas sociais". Esta definição revolucionou o campo ao:
- Pluralizar o conceito: Reconhecer que não existe UM letramento, mas múltiplos letramentos
- Contextualizar as práticas: Estabelecer que a leitura/escrita só fazem sentido em situações reais
- Politizar o processo: Reconhecer que dominar a escrita é uma questão de poder social
Como observa a autora (Soares, 1998, p. 18), "não basta apenas saber ler e escrever; é preciso viver as práticas sociais da leitura e da escrita, é preciso participar de eventos de letramento".
Expansão dos estudos no Brasil[editar]
Essa reflexão articulou-se a outros estudos nacionais importantes:
- Mary Kato (1986): Análise psicolinguística da escrita
- Angela Kleiman (1995): Ênfase nas práticas sociais e comunitárias
- Roxane Rojo (2009): Desenvolvimento dos conceitos de letramentos múltiplos e multiletramentos
Perspectiva etnográfica e crítica[editar]
A partir dessas contribuições, a pesquisa em letramento deslocou-se para uma perspectiva etnográfica e crítica, atenta às práticas concretas de leitura e escrita em comunidades específicas.
Barton e Hamilton (1998) concebem o letramento como conjunto de "eventos" e "práticas", em que os textos circulam e adquirem sentido em interação com as instituições e os sujeitos. Angela Kleiman (1995) enfatiza que as práticas letradas são constitutivas da vida social e não podem ser compreendidas apenas como competências individuais.
Multiplicidade e dinamismo[editar]
Assim, torna-se necessário reconhecer a existência de múltiplos letramentos: escolares, profissionais, comunitários, digitais, midiáticos, entre outros. Essa pluralidade indica que o letramento não é estático nem uniforme, mas dinâmico e historicamente situado.
A invenção da imprensa, a expansão da escolarização, a cultura de massas e, mais recentemente, as tecnologias digitais alteraram profundamente as formas de ler e escrever. O conceito de multiletramentos amplia esse horizonte, ao reconhecer que as práticas de letramento contemporâneas envolvem múltiplas linguagens, semioses e suportes, o que exige competências híbridas e flexíveis.
Letramento versus alfabetização[editar]
O paradigma da alfabetização tradicional[editar]
O modelo tradicional de alfabetização caracterizava-se por:
- Foco na correspondência grafema-fonema
- Ensino descontextualizado
- Ênfase na correção ortográfica
- Visão da escrita como código neutro
- Metodologias baseadas em cartilhas e exercícios mecânicos
Exemplos comparativos[editar]
Para compreender a distinção entre alfabetização e letramento, considerem-se os seguintes exemplos:
Situação 1 - Leitura de bula de remédio:
- Alfabetização: Decodificar "tomar 2 comprimidos a cada 8 horas"
- Letramento: Compreender que isso significa 3 vezes ao dia, calcular os horários adequados, entender as contraindicações, saber quando procurar orientação médica
Situação 2 - Redes sociais:
- Alfabetização: Ler e escrever comentários
- Letramento digital: Identificar fake news, compreender algoritmos, usar adequadamente diferentes linguagens (memes, hashtags), entender questões de privacidade
Situação 3 - Ambiente acadêmico:
- Alfabetização: Ler textos teóricos
- Letramento acadêmico: Citar adequadamente, construir argumentos baseados em evidências, dominar gêneros como resenha, artigo, dissertação
Letramento e teorias do discurso[editar]
A contribuição bakhtiniana[editar]
Mikhail Bakhtin revolucionou nossa compreensão da linguagem ao propor que toda comunicação se organiza em gêneros do discurso - "tipos relativamente estáveis de enunciados". Para Bakhtin, dominar um gênero significa compreender três dimensões:
- Conteúdo temático: O que pode/deve ser dito
- Estrutura composicional: Como organizar o texto
- Estilo: Que linguagem usar
Implicações para o letramento: Ser letrado significa dominar os gêneros relevantes para sua participação social. Cada esfera de atividade (escola, trabalho, família, lazer) possui seus gêneros específicos.
Exemplos de gêneros e práticas de letramento[editar]
Letramento profissional - e-mail corporativo[editar]
Características:
- Estrutura: Assunto claro, saudação formal, corpo objetivo, despedida adequada
- Linguagem: Formal, direta, respeitosa
- Contexto social: Hierarquias, prazos, protocolos institucionais
Inadequado | Adequado |
---|---|
"Oi, preciso falar com você" | "Assunto: Solicitação de reunião - Projeto X Prezado Sr. Silva, solicito agendar reunião..." |
Letramento acadêmico - resenha crítica[editar]
Características:
- Estrutura: Apresentação da obra, resumo, análise crítica, avaliação
- Linguagem: Formal acadêmica, terminologia específica, impessoalidade
- Contexto social: Comunidade científica, avaliação por pares
Inadequado | Adequado |
---|---|
"O livro é muito bom e interessante" | "A obra apresenta contribuições significativas ao campo teórico, especialmente na articulação entre os conceitos de..." |
Letramento digital - post em rede social[editar]
Características:
- Estrutura: Gancho inicial, desenvolvimento breve, call-to-action
- Linguagem: Informal, emotiva, uso de hashtags e emojis
- Contexto social: Engajamento, viralização, construção de persona
O discurso segundo Foucault[editar]
Michel Foucault amplia nossa compreensão ao mostrar que o discurso não é apenas linguagem, mas um conjunto de práticas que constroem conhecimento e poder. Para Foucault, os discursos:
- Determinam o que pode ser dito em determinado contexto
- Estabelecem quem tem autoridade para falar
- Criam objetos de conhecimento e formas de subjetivação
Letramento como prática discursiva: Dominar um letramento específico significa participar de uma formação discursiva, ou seja, compartilhar regras implícitas sobre o que é válido, verdadeiro e legítimo naquele contexto.
Exemplo: o discurso médico[editar]
Características do letramento médico:
- Vocabulário técnico: Uso preciso de terminologia científica
- Estrutura argumentativa: Baseada em evidências empíricas
- Autoridade epistêmica: Legitimada pela formação e instituição
- Relações de poder: Define quem pode "diagnosticar" e "prescrever"
Implicação social: Quando um paciente não domina esse letramento, fica em posição de subordinação, aceitando passivamente as orientações sem compreender plenamente sua condição.
Críticas e limitações do conceito[editar]
Apesar de sua importância, o conceito de letramento tem recebido várias críticas que merecem consideração cuidadosa.
Críticas teóricas[editar]
Risco de "pedagogização" excessiva[editar]
Crítica de Collins e Blot (2003): O conceito pode ser usado para responsabilizar indivíduos por "deficiências" que são, na verdade, questões estruturais.
Exemplo: Culpar trabalhadores por não conseguirem empregos por "falta de letramento", ignorando questões como desemprego estrutural e precarização.
Idealização do letramento dominante[editar]
Crítica: Tendência a valorizar apenas os letramentos das classes dominantes.
Exemplo: Desvalorizar o letramento de comunidades periféricas (como o rap, cordel, literatura marginal) em favor do letramento escolar tradicional.
Multiplicação excessiva de "letramentos"[editar]
Crítica de Britto (2003): A proliferação de termos (letramento digital, científico, matemático, etc.) pode esvaziar o conceito.
Risco: Perder o foco nas questões fundamentais de acesso à cultura escrita.
Determinismo tecnológico[editar]
Crítica: Associar automaticamente novas tecnologias a novos letramentos sem considerar continuidades.
Exemplo: Assumir que usar redes sociais automaticamente desenvolve "letramento digital crítico".
Críticas políticas e sociais[editar]
Despolitização das desigualdades[editar]
Problema: Focar apenas nas habilidades individuais, ignorando estruturas de classe, raça e gênero.
Exemplo: Programas de "inclusão digital" que oferecem acesso à tecnologia mas não questionam por que esse acesso era restrito.
Colonialismo epistêmico[editar]
Crítica: Impor modelos de letramento ocidentais/urbanos sobre comunidades tradicionais.
Exemplo: Exigir letramento escolar de povos indígenas sem valorizar suas tradições orais.
Limitações metodológicas[editar]
Dificuldade de mensuração[editar]
Problema: Como medir algo tão complexo e contextual quanto o letramento?
Exemplo: Testes padronizados podem não capturar letramentos locais relevantes.
Relativismo versus padrões[editar]
Tensão: Como equilibrar o respeito à diversidade de letramentos com a necessidade de critérios educacionais?
Implicações educacionais[editar]
Repensando o papel da escola[editar]
A escola deixa de ser local de transmissão de conhecimentos "neutros" para se tornar espaço de mediação entre diferentes letramentos. Entendê-lo implica reconhecer que as formas de legitimar certos gêneros e excluir outros refletem desigualdades estruturais. Quando a escola privilegia apenas determinadas variedades linguísticas ou gêneros formais, por exemplo, reforça distinções de classe, etnia ou gênero, marginalizando práticas letradas populares e comunitárias.
Princípios norteadores:
- Diversidade: Reconhecer e valorizar os letramentos que os alunos trazem
- Criticidade: Desenvolver leitura crítica dos textos e contextos
- Funcionalidade: Conectar as práticas escolares com práticas sociais reais
- Democratização: Garantir acesso aos letramentos de prestígio social
Estratégias pedagógicas[editar]
Projetos de letramento (Kleiman)[editar]
Princípio: Partir de problemas reais da comunidade.
Exemplo: Investigar a qualidade da água do bairro → produzir relatório → apresentar para autoridades locais.
Gêneros envolvidos: Questionário, relatório científico, carta formal, apresentação oral.
Sequências didáticas com gêneros (Dolz e Schneuwly)[editar]
Estrutura: Apresentação da situação → primeira produção → módulos de aprendizagem → produção final.
Exemplo prático:
- Situação: Criar um podcast sobre literatura brasileira
- Gêneros trabalhados: Roteiro, entrevista, resenha crítica
- Habilidades: Pesquisa, síntese, oralidade, edição de áudio
Letramentos críticos[editar]
Objetivo: Questionar as relações de poder presentes nos textos.
Exemplo: Analisar como diferentes jornais cobrem o mesmo evento.
Perguntas-chave: Quem fala? Para quem? Com que interesse? O que está silenciado?
Exemplos de atividades[editar]
Atividade multiletramento - "Fake News"[editar]
Objetivo: Desenvolver letramento digital crítico.
Processo:
- Coletar notícias sobre o mesmo tema em diferentes fontes
- Identificar elementos textuais e extratextuais que indicam confiabilidade
- Criar um guia visual (infográfico) sobre como identificar fake news
- Compartilhar nas redes sociais da escola
Projeto "Memórias do Bairro"[editar]
Objetivo: Valorizar letramentos locais.
Processo:
- Entrevistar moradores antigos (letramento oral)
- Pesquisar documentos históricos (letramento acadêmico)
- Criar um documentário (letramento audiovisual)
- Organizar exposição na escola (letramento expositivo)
Formação docente: novos desafios[editar]
Autoconhecimento dos próprios letramentos[editar]
O professor precisa refletir sobre suas próprias práticas letradas.
Questão reflexiva: "Que letramentos domino? Quais ainda preciso desenvolver?"
Competência intercultural[editar]
Capacidade de transitar entre diferentes letramentos sem hierarquizá-los.
Exemplo: Valorizar tanto a escrita formal quanto o slam poetry.
Atualização constante[editar]
Os letramentos são dinâmicos, especialmente os digitais.
Desafio: Acompanhar as transformações tecnológicas e sociais.
Avaliação em contextos de letramento[editar]
Mudança de paradigma: Da avaliação de "erros" para avaliação de adequação ao contexto.
Critérios avaliativos:
- Eficácia comunicativa: O texto cumpre seu propósito?
- Adequação ao gênero: Respeita as convenções esperadas?
- Criticidade: Demonstra reflexão sobre o contexto social?
- Criatividade: Inova dentro das possibilidades do gênero?
Considerações finais[editar]
O conceito de letramento, apesar de suas limitações e críticas, continua sendo fundamental para compreendermos os desafios educacionais contemporâneos. Essa concepção amplia o horizonte da educação, deslocando a ênfase da mera decodificação para a participação crítica em culturas letradas diversas.
O letramento nos convida a:
- Reconhecer a diversidade de formas de ler e escrever o mundo
- Questionar as hierarquias entre diferentes práticas letradas
- Conectar escola e vida social de forma mais orgânica e crítica
- Formar cidadãos críticos capazes de participar ativamente da sociedade
Em um mundo de transformações digitais aceleradas, mudanças nas formas de trabalho e crescente polarização social, que novos letramentos precisaremos desenvolver? E como garantir que esses desenvolvimentos sejam democráticos e inclusivos?
Em síntese, o letramento não pode ser reduzido à alfabetização, embora a inclua. Trata-se de um processo complexo de apropriação social da escrita, em que se conjugam competências individuais, práticas coletivas, contextos históricos e disputas ideológicas.
Bibliografia[editar]
Bibliografia básica[editar]
- BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
- KLEIMAN, A. B. Preciso "ensinar" o letramento? Campinas: Cefiel/Unicamp, 2005.
- ROJO, R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
- SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
- STREET, B. Literacy in Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
Bibliografia complementar[editar]
- BARTON, David; HAMILTON, Mary. Local Literacies: Reading and Writing in One Community. London: Routledge, 1998.
- BRITTO, L. P. L. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
- COLLINS, J.; BLOT, R. Literacy and Literacies. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
- FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
- FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1989.
- KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.
- KLEIMAN, Angela. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
- ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.
- SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003.
- THE NEW LONDON GROUP. A Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures. Harvard Educational Review, v. 66, n. 1, p. 60-92, 1996.