Glotopolítica

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A gestão da diversidade linguística, seja ela natural (gestão in vivo) ou planejada (gestão in vitro), é o objeto da Política Linguística e da Glotopolítica, áreas que investigam as intervenções estatais, institucionais e sociais sobre as línguas.

O marco da Constituição de 1988[editar]

O Brasil possui uma profunda diversidade etnolinguística, historicamente reprimida e negada por ideologias autoritárias que impuseram o monolinguismo em português como símbolo de unidade nacional. Políticas de "nacionalização" durante o Estado Novo (1937-1945) proibiram o uso público de línguas de imigração (alemão, italiano, japonês, polonês) em nome de uma identidade nacional homogênea. Línguas indígenas foram sistematicamente reprimidas por séculos através de políticas coloniais e pós-coloniais que impunham o português como única língua legítima.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 marcou um ponto de inflexão histórica, pois pela primeira vez na história do país, essa diversidade foi reconhecida constitucionalmente. O Artigo 210, § 2º, estabelece:

"O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem."

E o Artigo 215, § 1º, afirma:

"O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional."

Embora esses dispositivos ainda priorizem o português, eles representam uma abertura inédita ao reconhecimento do multilinguismo brasileiro e aos direitos linguísticos de comunidades minoritárias.

Glotopolítica refere-se ao conjunto de ações e intervenções políticas (legais, educacionais, administrativas, midiáticas) que buscam gerir a diversidade e o status das línguas, incluindo planejamento de corpus (normatização, padronização, criação de ortografias) e planejamento de status (oficialização, uso em domínios institucionais).

A abertura política pós-1988 possibilitou a criação de ações glotopolíticas cruciais no final da década de 1990 e início dos anos 2000, como:

  • Grupo de Trabalho sobre Políticas Linguísticas do Mercosul (GTPL): Promove o multilinguismo e o ensino recíproco de português e espanhol nos países membros.
  • Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL): ONG que atua na promoção de direitos linguísticos e na assessoria a processos de cooficialização.
  • Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL): Criado pela Lei 7.387/2010 e pelo Decreto 7.387/2010, reconhece e documenta línguas como patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Cooficialização de línguas e combate ao preconceito[editar]

As ações glotopolíticas resultantes dos estudos de SC têm enfatizado o reconhecimento do Brasil como país multi- e plurilíngue e o combate ao preconceito linguístico através de medidas concretas.

Um dos exemplos mais notáveis de ação glotopolítica é a cooficialização de línguas em municípios brasileiros, processo pelo qual uma ou mais línguas passam a ter status oficial ao lado do português em determinado território, com implicações para educação, administração pública, sinalização urbana e serviços públicos.

Marcos históricos da cooficialização no Brasil:

  • 2002 – São Gabriel da Cachoeira (AM): As línguas Tukano, Baniwa e Nheengatu foram cooficializadas através da Lei Municipal 145/2002, sendo as primeiras línguas indígenas a receberem esse status no país. O município, localizado no alto Rio Negro, possui população majoritariamente indígena de 23 etnias diferentes.
  • 2007 – Tacuru (MS): Cooficializou a língua Guarani através da Lei Municipal 2.615/2007.
  • 2009 – Pomerode (SC): Cooficializou a língua Pomerano (variedade germânica) através da Lei Municipal 1.184/2009, município com forte presença de descendentes de imigrantes alemães.
  • Outras cooficializações: Municípios como Santa Maria de Jetibá (ES) com o Pomerano; Serafina Corrêa (RS) com o Talian (italiano vêneto brasileiro); diversos municípios gaúchos fronteiriços com iniciativas de reconhecimento do Espanhol.

Essas ações institucionais trazem consequências práticas importantes:

  • Sinalização bilíngue em espaços públicos
  • Atendimento em serviços públicos nas línguas cooficializadas
  • Valorização das línguas na educação (escolas bilíngues/multilíngues)
  • Fortalecimento da autoestima dos falantes e combate à insegurança linguística
  • Reconhecimento simbólico da legitimidade dessas línguas

Desafios contemporâneos da glotopolítica brasileira[editar]

Apesar dos avanços, a implementação efetiva das políticas linguísticas enfrenta desafios significativos:

  • Falta de Recursos: Muitas leis de cooficialização existem apenas no papel, sem dotação orçamentária para implementação (formação de professores, produção de materiais didáticos, tradutores/intérpretes).
  • Resistência Ideológica: Persistência de ideologias monolíngues que veem a diversidade linguística como "ameaça à unidade nacional" ou "atraso".
  • Fragilidade Institucional: Ausência de políticas nacionais sistemáticas e dependência de iniciativas municipais isoladas.
  • Perda Linguística Acelerada: Muitas línguas indígenas estão criticamente ameaçadas, com número reduzido de falantes (muitas com menos de 100 falantes) e interrupção da transmissão geracional.
  • Preconceito Linguístico Persistente: Discriminação contra falantes de variedades não prestigiadas continua amplamente disseminada, inclusive em ambientes educacionais.

A Sociolinguística de Contato e a Glotopolítica devem, portanto, não apenas descrever e teorizar, mas também atuar propositivamente na defesa dos direitos linguísticos como direitos humanos fundamentais.

Bibliografia[editar]

Multilinguismo e Política Linguística no Brasil:

  • OLIVEIRA, Gilvan Müller de (Org.). Declaração Universal dos Direitos Linguísticos: novas perspectivas em política linguística. Campinas: Mercado de Letras/ALB/IPOL, 2003.
  • OLIVEIRA, Gilvan Müller de; ALTENHOFEN, Cléo Vilson. O in vitro e o in vivo na política de línguas: como compatibilizar?. In: MELLO, Heliana; ALTENHOFEN, Cléo V.; RASO, Tommaso (Orgs.). Os contatos linguísticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
  • SAVEDRA, Mônica M. G.; LAGARES, Xoán Carlos (Orgs.). Políticas linguísticas, políticas de línguas: por uma perspectiva latinoamericana. Niterói: PPGSD-UFF, 2012.

Línguas Indígenas e Línguas de Imigração no Brasil:

  • FRANCHETTO, Bruna; LEITE, Yonne (Orgs.). Origens da linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
  • RODRIGUES, Aryon Dall'Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.
  • ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul: ein Beitrag zur Beschreibung einer deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1996.

Legislação e Documentos Oficiais:

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
  • BRASIL. Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. Institui o Inventário Nacional da Diversidade Linguística. Diário Oficial da União, Brasília, 10 dez. 2010.
  • SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM). Lei Municipal nº 145, de 11 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a co-oficialização das línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa, no município de São Gabriel da Cachoeira/Estado do Amazonas.