Por José de Anchieta (1563)
O Poema da Virgem, escrito por José de Anchieta em 1563, é um extenso canto de devoção à Virgem Maria, composto em latim enquanto o autor estava entre os tamoios. A obra exalta as virtudes e a pureza de Maria, unindo espiritualidade, erudição humanista e missão religiosa, tornando-se um dos marcos da literatura colonial brasileira.
COMPAIXÃO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
O seio que de dor amargado esmorece,
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
Olha, perante Anás, como duro soldado
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
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Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
Mas findou tua vida, essa doce vivência
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
Pois se teu coração o conserva, e jamais
para ferido assim crua morte o tragar,
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
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Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
Por aí entrarei ao amor descoberto,
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!
FIM
Baixar texto completo (.txt)ANCHIETA, José de. Poema à Virgem. [S. l.: s. n.], 1563. :