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#Diálogos#Literatura Brasileira

Diálogo sobre a Conversão do Gentio

Por Padre Manuel da Nóbrega (1556)

Diálogo sobre a Conversão do Gentio, escrito por Padre Manuel da Nóbrega (1517–1570) por volta de 1556–1557, é um dos primeiros textos produzidos no Brasil. A obra apresenta, em forma de diálogo, a discussão entre dois missionários sobre os desafios de evangelizar os indígenas, revelando tensões culturais, religiosas e políticas do início da colonização e convidando o leitor a refletir sobre alteridade e persuasão.

Porque me dá o tempo lugar pera me alargar, quero falar com meus Irmãos o que meu spirito sente, e tomarei por interlocutores ao meu Irmão Gonçalo Alvarez, a quem Deus deu a graça e talento pera ser trombeta de sua palavra na Capitania do Spiritu Sancto, e com meu Irmão Matheus Nuguera, ferreiro de Jesu Christo, o qual, posto que com palavra nam prega, fá-lo com obras e com marteladas.

Emtra logo ho Irmão Gonçalo Alvarez, tentado dos negros do Gato e de todos os outros e, meio desesperado de sua conversão, diga:

Condiciones Indorum quæ conversioni christianæ opponuntur

GONÇALO ALVAREZ: Por demais hé trabalhar com estes; são tão bestiais, que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão incarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar; pregar a estes, hé pregar em deserto ha pedras.

MATHEUS NUGUEIRA: Se tiveram rei, poderão-se converter, ou se adoraram alguma cousa; mas, como nam sabem que cousa hé crer nem adorar, não podem entender ha pregação do Evangelho, pois ella se funda em fazer crer e adorar a hum soo Deus, e a esse só servir; e como este gentio nam adora nada, nem cree nada, todo o que lhe dizeis se fiqua nada.

GONÇALO ALVAREZ: O que bem dizeis, quão fora estes estão de se converterem hum dia 5 e no outro tres mil por huma soo pregação dos Apostolos, nem de se comverterem reinos, cidades, como se fazia no tempo passado por ser gente de juizo.

MATHEUS NUGUEIRA: Huma cousa tem estes pior de todas, que quando vem à minha tenda, com hum anzol que lhes dê, os converterei a todos, e com outros os tornarei a desconverter, por serem incostantes, e não lhes entrar a verdadeira fee nos coraçõis. Ouvi eu já hum evangelho a meus Padres, omde Christo dizia: «Não deis o Sancto aos cãis, nem deiteis as pedras preciosas aos porquos». Se alguma geração há no mundo, por quem Christo N. S. isto diga, deve ser esta, porque vemos que são cãis em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem, e esta deve ser a rezão porque alguns Padres que do Rreino vierão os vejo resfriados, porque vinhão cuidando de converter a todo brasil em huma hora, e vem-se que não podem converter hum em hum anno por sua rudeza e bestialidade.

GONÇALO ALVAREZ: Ora isso deve sser, porque não sei a qual ouvi, que quando vinhão na nao, maginavão-se hum São João Bautista junto de hum rio Jurdaam a bautizar quantos a elles viessem.

MATHEUS NUGUEIRA: Se forão tainhas do Piraiqué podera ser...

GONÇALO ALVAREZ: Não há homem en toda esta terra, que conheça estes, que diga outra cousa. Eu tive hum negro, que criei de pequeno, cuidei que hera boom christão e fugiu-me pera os seus: pois quando aquelle não foi boom, não sei quem o seja. Não hé este o que soo me faz descomfiar destes serem capazes do bautismo, porque não fui eu soo o que criei este corvo; nem sei se hé bem chamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos, tomados nos ninhos, se crião e amanção e ensinão, e estes, mais esquecidos da criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação que nelles se faz.

NUGUEIRA: Pois que rezõis mais vos move[m] a desconfiar de nossos Padres, que a isso forão mandados do Senhor pera lhes mostrarem a fee, não farão fructo nestas gentes? Por de mais!

GONÇALO ALVAREZ: Muito bem lhes chamais. Sabeis qual hé a mor dificuldade que lhes acho? Serem tam faciles de diserem a tudo si ou pâ, ou como vós quizerdes; tudo aprovão logo, e com a mesma facilidade com que dizem pâ, dizem aani. E se algumas vezes chamados dizem neim tia, hé polos não emportunardes, e mostra-oo bem a obra, que se não hé com o bordão não se ergem; pera beber nunqua dormem! Esta sua facilidade de tudo lhe parecer bem, acompanhada com a esperientia de nenhum fructo de tanto pâ, tem quebrado os corações a muitos. Dizia hum de nossos Irmãos que estes erão o filho que disse no Evangelho a seu pai, que o mandava, que hia e nunqua foy.

Sed amore Dei laborandum est, quia etiam Indi filii Dei sunt

NUGUEIRA: Pois que remedio, emos de cansar debalde? A minha forija de dia e de noite, e o meu trabalho não me renderá nada entre elles pera levar diante de Christo quando nos vier julgar, pera que ao menos curta alguma parte de meus peccados muitos?...

GONÇALO ALVAREZ: Disso, Irmão, estais seguro que vós não perdeis nada; se Christo promete por hum pucaro de agua fria, dado por seu amor o reino dos ceos, como hé possivel que percais vós tantas marteladas, tanto suor, tanta vigilia, e a paga de tanta ferramenta como fazeis? As vossas fouces, machados, muito boons são para roçardes a mata de vossos peccados, na qual o Espiritu Sancto prantará muitas graças e dões seus, se por seu amor trabalhaes.

NUGUEIRA: Ay! Ai!

GONÇALO ALVAREZ: Porque daes esses ays?

NUGUEIRA: Porque vós meteis esse pontinho: se vós por seu amor trabalhais.

GONÇALO ALVAREZ: Pois que cuidais? Desenganai-vos, que se assim não hé tudo perdeis quanto fazeis.

(continua...)

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