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#Tratados#Literatura Brasileira

Tratado da Terra do Brasil

Por Pero de Magalhães Gândavo (1576)

Não se pode numerar nem compreender a multidão de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil; porque ninguém pode por o sertão dentro caminhar seguro, nem passar por terra onde não acha povoações de indios armados contra todas as nações humanas, e assim como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente.Havia muitos destes indios pela Costa junto das Capitanias, tudo enfim estava cheio deles quando começaram os portugueses a povoar a terra; mas porque os mesmos indios se alevantaram contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e matarão muitos deles, outros fugirão pela o Sertão, e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das Capitanias. Junto delas ficarão alguns indios destes nas aldeãs que são de paz, e amigos dos portugueses.A língua deste gentio toda pela Costa é, uma: carece de três letras —scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.Estes indios andam nus sem cobertura alguma, assim machos como fêmeas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo, e trazem descoberto quanto a natureza lhes deu. Vivem todos em aldeias, pode haver em cada uma sete, oito casas, as quase são compridas feitas a maneira de cordoarias; e cada uma delas está cheia de gente duma parte e doutra, e cada um por si tem sua estância e sua rede armada em que dorme, e assim estão todos juntos uns dos outros por ordem, e pelo meio da casa fica um caminho aberto pela se servirem. Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve doutra cousa se não de ir com eles à guerra, e aconselhálos como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles cousa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram cousa alguma nem têm pela si que há na outra vida glória pelos bons, e pena pela os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas perecem com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida.Estes indios são mui belicosos e têm sempre grandes guerras uns contra os outros; nunca se acha neles paz nem e possível haver entre eles amizade; porque umas nações pelejam contra outras e matam-se muitos deles, e assim vai crescendo o ódio cada vez mais e ficam inimigos verdadeiros perpetuamente. As armas com que pelejam são arcos e flechas; a cousa que apontarem não na erram, são mui certos com esta arma e mui temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. E são mui inclinados a pelejar, e mui valentes e esforçados contra seus adversários, e assim parece cousa estranha ver dous, três mil homens nus duma parte e doutra com grandes assovios e grita flechando uns aos outros; e enquanto dura esta peleja nunca estão com os corpos quedos meneando-se duma parte pela outra com muita ligeireza para que não possam apontar nem fazer tiro em pessoa certa; algumas velhas costumam apanhar-lhes as flechas pelo chão e servi-los enquanto pelejam. Gente e esta mui atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vão à guerra sempre lhes parece que têm certa a vitória e que nenhum de sua companhia há de morrer. E quando partem dizem, vamos matar: sem mais consideração, e não cuidam que também podem ser vencidos. Não dão vida a nenhum cativo, todos matam e comem, enfim que suas guerras são mui perigosas, e devem-se ter em muita conta porque uma das cousas que desbaratou muitos portugueses foi a pouca estima em que tinham a guerra dos indios, e o pouco caso que faziam deles, e assim morreram muitos miseravelmente por não se aperceberem como convinha; destes houve muitas mortes desastradas: e isto acontece cada passo nestas partes.Quando estes indios tomam alguns contrários, se logo com aquele ímpeto os não matam, levam-nos vivos pela suas aldeias (ou sejam portugueses ou quaisquer outros indios seus inimigos), e tanto que chegam a suas casas lançam uma corda mui grossa ao pescoço do cativo para que não possa fugir, e armam-lhe uma rede em que durma e dão-lhe uma índia moça, a mais formosa e honrada que há na aldeia, para que durma com ele, e também tenha cuidado de o guardar, e não vai pela parte que não no acompanhe.Esta índia tem cargo de lhe dar muito bem de comer e beber; e depois de o terem desta maneira cinco ou seis meses ou o tempo que querem, determinam de o matar; e fazem grandes cerimônias e festas aqueles dias, e aparelham muitos vinhos pela se embeberam, e fazem-nos da raiz duma erva que se chama aipim, a qual fervem primeiro e depois de cozida mastigam-na umas moças virgens espremem-na nuns potes grandes, e dali a três ou quatro dias o bebe. E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto da aldeia levamno a banhar nela com grandes cantares e folias tanto que chegam com ele à aldeia, atam-no pela cinta com quatro cordas cada uma pela sua parte e três, quatro indios pegados em cada ponta destas e assim o levam ao meio dum terreiro, e tiram tanto por estas cordas que não se possa bulir pela uma parte nem pela outra, as mãos deixam soltas porque folgam de o ver defender com elas. Aquele que o há de matar empina-se primeiro com penas de papagaio de muitas cores por todo o corpo: há de ser este matador o mais valente da terra, e mais honrado. Traz na mão uma espada dum pau mui duro e pesado com que costumam de matar, e chega-se ao padecente dizendo-lhe muitas cousas e ameaçando-lhe sua geração que o mesmo ha de fazer a seus parentes; e depois de o ter afrontado com muitas palavras injuriosas dá-lhe uma grande pancada na cabeça, e logo da primeira o mata e lhe fazem pedaços. Está uma índia velha com um cabaço na mão, e assim como ele cai acode muito de pressa com ele a meter-lho na cabeça pela tomar os miolos e o sangue: tudo enfim cozem e assam, e não fica dele cousa que não comam. Isto e mais por vingança e por ódio que por se fartarem.Depois que comem a carne destes contrários ficam nos ódios confirmados e sentem muito esta injuria, e por isso andam sempre a vingar-se uns contra os outros. E se a moça que dormia com o cativo fica prenha, aquela criança, que pare depois de criada, matam-na e comem-na e dizem que aquela menina ou menino era seu contrario verdadeiro por isso estimam muito comer-lhe a carne e vingar-se dele. E porque a mãe sabe o fim que hão de dar a esta criança, muitas vezes quando sente prenha mata-a dentro da barriga e faz com que morra. E acontece algumas vezes afeiçoar-se tanto a este cativo e tomar-lhe tanto amor que foge com ele pela sua terra pela o livrar da morte. E assim alguns portugueses há que desta maneira escaparão e estão hoje em dia vivos; e muitos indios que do mesmo modo se salvarão, ainda que são alguns tão brutos que não querem fugir depois de os terem presos; porque houve algum que estava já no terreno atado pela padecer e davamlhe a vida e não quis senão que o matassem, dizendo que seus parentes o não teriam por valente, e que todos correriam com ele; e daqui vem não estimarem a morte; e quando chega aquela hora não na terem em conta nem mostrarem nenhuma tristeza naquele passo.Finalmente que são estes indios mui desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são mui desonestos e dados á sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera rezam de humanos ainda que todavia sempre têm resguardo os machos e as fêmeas em seu ajuntamento, e mostram ter nisto alguma vergonha. Todos comem carne humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver: não de seus amigos com quem eles têm paz se não dos contrários. Tem esta qualidade estes indios que de qualquer cousa que comam por pequena que seja hão de convidar com ela quantos estiverem presentes, só esta proximidade se acha entre eles. Comem de quantos bichos se criam na terra, outro nenhum enjeitam por peçonhento que seja, somente aranha.Têm estes indios machos por costume arrancar toda a barba e não consentem nenhum cabelo em parte alguma de seu corpo, salvo na cabeça, ainda que ao redor dela por baixo tudo arrancam. As fêmeas prezam-se muito de seus cabelos e trazem-nos muito compridos e penteados e as mais delas enastrados.Os machos costumam trazer o beiço furado e uma pedra no buraco metida por galantaria, outros há que trazem o rosto todo cheio de buracos e assim parecem mui feios e disformes: isto lhes fazem quando são meninos. Também alguns indios andam pintados por todo o corpo, pelo qual fazem uns riscos escritos na carne: isto não traz se não quem tem feito alguma valentia. E assim também machos como fêmeas costumam tingir-se com sumo duma fruta que se chama jenipapo, que e verde quando se pizza e depois que põe no corpo e se enxuga fica mui negro e por muito que se lave não se tira se não aos nove dias: isto tudo fazem por galantaria.Estas índias guardam castidade a seus maridos e são muito suas amigas, porque também eles sofrem mal adultérios; casam os mais deles com suas sobrinhas, filhas de seus irmãos ou irmãs, estas são suas mulheres verdadeiras, e não lhes podem negar seus pais.Algumas índias se acham nestas partes que juram e prometem castidade, e assim não casam nem conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem no consentiram ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem mulheres, e cortam seus cabelos da mesma maneira que os machos trazem, e vão à guerra com seu arco e flechas e a caça: enfim que andam sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve e que lhe faz de comer como se fossem casados.Estes indios vivem mui descansados, não têm cuidado de cousa alguma se não de comer e beber e matar gente; e por isso são mui gordos em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e como se agastam de qualquer cousa comem terra e desta maneira morrem muitos deles bestialmente.Todos seguem muito o conselho das velhas, tudo o que elas lhes dizem fazem e têm-no por muito certo: daqui vem a muitos moradores não comprarem nenhumas por lhes não fazerem fugir seus escravos.Quando estas índias parem a primeira cousa que fazem depois do parto lavam-se todas num ribeiro e ficam tão bem dispostas como se não pariram; em lugar delas se deitam seus maridos nas redes, e assim os visitam e curam como se eles fossem os paridos.Quando algum destes indios morre costumam enterrá-lo numa cova assentado sobre os pés, com sua rede as costas em que ele dormia, e logo pelos primeiros dias põem-lhe de comer em cima da cova. Outras muitas bestialidades usam estes indios que aqui não escrevo, porque minha intenção foi não ser comprido, e passar por tudo isto com brevidade.

DOS RESGATES

Estes indios não possuem nenhuma fazenda, nem procuram adquiri-la como os outros homens, somente cubicam muito algumas cousas que são deste Reino — scilicet, camisas, pelotes, ferramentas e outras cousas que eles têm em muita estima e desejam muito alcançar dos portugueses. A troco disto se vendiam uns aos outros, e os portugueses resgatavam muitos deles e salteavam quantos queriam sem ninguém lhes ir a mão, mas já agora não há isto na terra nem resgates como soía, porque depois que os padres da Companhia vieram a estas partes proveram neste negócio e vedaram muitos saltos que faziam os portugueses por esta Costa, os quase encarregavam muito suas consciências com cativarem muitos indios contra direito e moverem-lhes guerras injustas. E por isso ordenaram os padres e fizeram com os Capitães da terra que não houvesse mais resgates nem consentissem que fosse nenhum português a suas aldeias sem licença do mesmo Capitão. E quantos escravos agora vêm novamente do Sertão ou das outras Capitanias todos levam primeiro à Alfândega e alli os examinam e lhes fazem perguntas quem os vendeu, ou como forram resgatados, porque ninguém os pode vender se não seus pais ou aqueles que em justa guerra os cativam, e os que acham mal adquiridos põem-nos em sua liberdade, e desta maneira quantos indios se compram são bem resgatados, e os moradores da terra não deixam por isso de ir muito avante com suas fazendas.

CAPÍTULO VIII

DOS BICHOS DA TERRA

(continua...)

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