Por Padre Manuel da Nóbrega (1556)
GONÇALO ALVAREZ: Parece muita rezão que seya isso muita verdade. Comforme a isso não foi boom fazer El-Rei Dom Manoel os judeos christãos despois da matança, ainda que os mais delles dezião que si, mas tomou-os com os portais cheios de sangue que derramarão os ministros do demonio percutiente, que por justiça de Deus os ferio, yncitados por dous frades dominicos, que despois pollo mesmo caso morrerão no Porto por mandado do dito Rei, e assi se pagou hum mal com outro, como se custuma no mundo, permitindo e disimulando Nosso Senhor até o dia em que manifestar a todos nossas obras quais forão. E El-Rei Sesebuto, Rei d’Aragão, não se lhe condena nos sagrados canones o zelo com que contra vontade dos pais, judeus, mandou en seu reino bautizar seus filhos, mas o fim não lho louvão. Logo nem tudo o que parece bem se á-de fazer, senão o que realmente for boom.
NUGUEIRA: E como saberá homem sempre acertar, que hé homem ignorante e fraco, se reis com seus conselhos não acertão?
GONÇALO ALVAREZ: Tomando conselho com Deus e com os homens desapaixonados, e que tenhão boa consientia.
NUGUEIRA: E onde se acharão esses? Acerta-se muitas vezes, que não se acham senão huns rejalados e frius, como eu, que por se poupar não querem sair do ninho, não se lembrando quanto as almas custarão a Christo, e estes tais parece que não podem aconselhar bem em semelhantes negotios.
GONÇALO ALVAREZ: À falta doutros, que tenhão zelo e saber, todavia me aconselharia com esses, porque alguma ora falou já o Espiritu Santo, e aconselhou hum profeta, ainda que não muito virtuoso, por bem do povo que elle amava; e se elle quer fazer bem a estes, como hé de crer que quer, porque não aborrece nada do que fez, ainda que se o que nós fazemos, elle aconselhara por maos o que se deve fazer. Mas já folgaria ouvir-vos as rezõis que tendes ouvido dos Padres pera nos animarmos a trabalhar com elles, e as que tem en contrario das que demos no principio.
NUGUEIRA: Já que tanto apertais comigo, e me pareceis desejoso de saber a verdade deste negocio, creo que vos tenho esgotado, dir-vos-ei o que muitas veses martelando naquele ferro duro estou cuidando e o que ouvi a meus Padres por muitas vezes. Parece que nos podia Christo, [que] nos está ouvindo, dizer: Ó estultos e tardios de coração pera crer! Estou eu imaginando todas as almas dos homens serem humas e todas de hum metal, feitas à imagem e semelhança de Deus, e todas
capazes da gloria e criadas pera ella; e tanto val diante de Deus por naturaleza a alma do Papa, como a alma do vosso escravo Papaná.
GONÇALO ALVAREZ: Estes tem alma como nós?
NUGUEIRA: Isso está claro, pois a alma tem tres potentias, entendimento, memoria, vontade, que todos tem. Eu cuidei que vós ereis mestre já em Israel, e vós não sabeis isso! Bem parece que as theologias que me dizeis arriba eram postiças do P.e Brás Lourenço, e não vossas. Quero-vos dar hum desengano, meu Irmão Gonçalo Alvarez: que tão ruim entendimento tendes vós pera entender ho que vos queria dizer, como este gentio pera entender as cousas de nossa fé.
GONÇALO ALVAREZ: Tendes muita rezão, e não hé muito, porque eu ando n’agoa aos peixes bois e trato no mato com brasil, não hé muito ser frio; e vós andais sempre no fogo, rezão hé que vos aquenteis, mas não deixeis de proseguir adiante, pois huma das obras de misericordia hé ensinar aos ignorantes.
NUGUEIRA: Pois estai atento. Despois que nosso pai Adam peccou, como dis o psalmista, não conhecendo a honrra que tinha, foi tornado semelhante à besta, de maneira que todos, asi Portugueses, como Castelhanos, como Tamoios, como Aimurés, ficamos semelhantes a bestas por natureza corrupta, e nisto todos somos iguais, nem dispensou ha naturaleza mais com huma geração que com outra, posto que em particular dá milhor entendimento a hum que a outro. Façamos logo do ferro todo hum, frio e sem vertude, sem se poder volver a nada, porem, metido na forija, o fogo o torna que mais parece fogo que ferro; assi todas as almas sem graça e charidade de Deus sam ferro frio sem proveito, mas quanto mais se aquenta no fogo, tanto mais fazeis delle o que quereis. E bem se vê em hum que está em peccado mortal, fora da graça de Deus que pera nada presta das cousas que toquam a Deus, não pode rezar, não pode estar na igreja, a toda a cousa espiritual tem fastio, não tem vontade pera fazer cousa boa nenhuma; e se por medo ou por obedientia ou por vergonha ha faz, hé tão tristemente e tão preguisoçamente, que não val nada, porque está escripto que ao dador com alegria recebe Deus.
GONÇALO ALVAREZ: Isso bem entendo eu, porque ho vi em mim antes que fosse cassado, que andava en peccados e ainda agora praza a Deus que não tenha muito disso.
NUGUEIRA: Pois que direi eu, que envelheci nelles, e como homem que foi ferido falo!
GONÇALO ALVAREZ: Pois [se] assim hé, que todos temos huma alma e huma bestialidade naturalmente, e sem graça todos somos huns, de que veyo estes negros serem tão bestiais, e todas as outras geraçõis, como os romanos, e os gregos, e os judeus, serem tão discretos e avissados?
(continua...)
NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. Com preliminares e anotações históricas e críticas de Serafim Leite. Lisboa: 1954