Por Machado de Assis (1868)
Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dous amigos velhos. Tinham observado reciprocamente o caráter e os sentimentos. Meneses gostava de ver a seriedade do médico e o seu bom senso, estimava-o com as suas intolerâncias, aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via em Meneses um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Meneses parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e Meneses voltava logo aos seus modos habituais.
"Não é um misantropo, pensava então Estêvão; mas este homem tem um drama dentro de si."
A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança quando uma noite em que se achavam no Teatro Lírico, Estêvão chamou a atenção de Meneses para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.
- Não conheço aquela mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?
Meneses olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:
- Não conheço.
A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes olhou para Meneses, e este duas vezes para ela, encontrando-se os olhos de ambos.
No fim do espetáculo, os dous amigos dirigiram-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Meneses passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da Rua dos Ciganos, pararam os dous porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se passo apressado; Meneses voltou o rosto, e dando o braço a Estêvão desceu imediatamente, apesar da dificuldade.
Estêvão compreendeu, mas nada viu.
Pela sua parte, Meneses não deu sinal algum.
Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o médico.
- Que efeito lhe faz, perguntou ele, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes?
Estêvão respondeu distraidamente, e Meneses continuou a conversa no mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da memória.
Capítulo IV
Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai.
A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito arredado, achou ali grande número de conhecidas. Não dançou; viu, conversou, riu um pouco e saiu.
Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor.
Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.
A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava daquelas feições. Conversou com ela durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao chegar à casa não pôde dormir.
Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas páginas de matemáticas, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os olhos: o espírito ia ter com a viúva.
O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão Soares adormeceu.
Mas sonhou com a viúva.
Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade.
Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu.
- Casar-me! disse ele. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espírito receoso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquela mulher...e boa noite.
Começou a vestir-se.
Trouxeram-lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde, e saiu para ir ver alguns doentes.
Mas ao passar pela Rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão embebido em ouvi-la falar que não o decorou.
Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe pedisse para saber o número da casa naquele momento.
Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.
(continua...)