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#Diálogos#Literatura Brasileira

Diálogo sobre a Conversão do Gentio

Por Padre Manuel da Nóbrega (1556)

não fique nada por fazer a esta gente. Alguns não tem quá grande esperança della, olhando a sua rudeza e as cousas da fee serem delicadas, e que requerem outros entendimentos e custumes, porque dizem elles que hé mui grande dispocissão pera hum vir a ser christão, ter mui boom entendimento (que, ainda que soo este não abasta pera entender as cousas da fee, ajuda a lhe fazer entender que não há nella cousa que seja contra a rezão natural) de que estes carecem; e daqui dizem que naceo que no tempo dos Apostolos, quanto os homens erão mais sabios e de boa vida, mais facilmente vinhão ò conhecimento da verdade, e os martires mais lhos contrariavão os maos custumes dos tiranos, que as rezõis que nenhum delles tivesse contra o que lhe pregavão; e que, porque estes gentios não tem rezõis e são muito viciosos, tem a porta serrada para a fee naturalmente, se Deus por sua misericordia não lha abrisse.

GONÇALO ALVAREZ: Parecem boas rezõis essas, a memoria das cousas de Deus. Dizeime, Irmão, por amor de de N. Senhor, não há, entre meus Irmãos e Padres, quem estê da parte destes negros?

NUGUEIRA: Todos, porque todos os desejão converter e estão detreminados de morrer na demanda, como disse.

GONÇALO ALVAREZ: Não duvido eu que todos tem esses desejos, mas como isso hé cousa de necessidade, quizera eu que ouvera hum que dera rezõis pera nos acender o fogo; e, pera vos falar por nossos termos, quizeramos huns foles pera nos asoprar o fogo que se nos apaga.

NUGUEIRA: Não falta isso, bastão os nossos Padres pera fazer fogo artificial que nos queime a todos os que neste negotio nos ocupamos, porque como o elles devem de ter no espírito, não fazem senão destruir rezõis e dar outras, ainda que a frios como eu, não satisfazem.

GONÇALO ALVAREZ: Porque?

NUGUEIRA: Porque todas ellas parece que não convem mais, senão que, já que avemos de trabalhar com esta gente, seja com muito fervor, o que a todos nos convem muito, pois, segundo a charidade com que trabalharmos na vinha do Senhor, nos pagará quando chamar à tarde os obreiros pera lhes pagar seus jornaes, os quais já ouvireis que só derão, não comforme ao trabalho e tempo, senão ao fervor, amor e diligentia que se puzer na obra.

GONÇALO ALVAREZ: Não falemos como ferreiro.

NUGUEIRA: Não sei como falo, falo como me vem à boca, se for mal dito perdoai, que não hé ninguem obrigado a mais que ao que tem e sabe.

GONÇALO ALVAREZ: Deixemos, isto! Sou tão descuidado que logo me esquece que esperais, como vos louvão, como o fio quente quando o batem! Eu me guardarei de vos dar mais martelada porque me não queime. Por amos de Deus que me digais algumas das rezõis que os Padres dão pera estes gentios virem a ser christãos? Que alguns tem asertado que trabalhamos debalde, ao menos até que este gentio não venha a ser mui sogeito, e que com medo venha a tomar a fee.

NUGUEIRA: E isso que aproveitaria se fossem christãos por força, e gentios na vida e nos custumes e vontade?

GONÇALO ALVAREZ: Aos pais, dizem os que tem esta opinião, que pouco, mas os filhos, netos e dahi por diante o poderião vir a ser, e parece que tem rezão.

NUGUEIRA: E a mi sempre me pareceo este muito bom e milhor caminho, se Deus assi fizesse, que outros. Não falemos em seus segredos e potentia e sabedoria que não há mister conselheros, mas humanamente como homens assi falando, este parece o milhor e o mais certo caminho.

GONÇALO ALVAREZ: Mas as rezõis dos Padres, se vos lembrão, desejo ouvir, porque as que eu apontei no principio não sei como mas elle[s] desfarão.

NUGUEIRA: Olhai quá, Irmão, a charidade tudo desfaz e derrete, como o fogo ao ferro muito duro amolenta e faz em massa.

GONÇALO ALVAREZ: Nisso me parece que vós não tendes rezão, porque a charidade não poderá tirar a verdade, e mais que rezõis pertencem ao entendimento, e a charidade à vontade, que são cousas diferentes. Asi como o fogo não tira ao ferro senão a escoria, e não gasta o ferro limpo e puro: se as rezõis são boas a charidade não será contra ellas, porque seria contra a verdade, e assi não fiquaria caridade senão pertinatia.

NUGUEIRA: Parece-me que hé isso verdade, e que onde ouver sobejo zelo, às vezes averá segar-se as rezõis ou usar pouco dellas, o que cada dia se vê nos muito afeiçoados a huma cousa.

GONÇALO ALVAREZ: E isso não hé mao?

NUGUEIRA: Não sei eu hora quam mao será! Parece-me que ouvi dizer que S. Paulo não aprovava tudo o que com boom zello se fazia; e que a huns dava testemunho do zelo, ainda que era boom, a circunstantia necessaria, que hé saber se hé comforme a vontade de Deus, porque esta hé a regra que mede todas as obras, e tanto vão

direitas e boas quanto com ella conformão, e tanto desvião da bondade quanto desta se desvião.

(continua...)

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