Por Padre Manuel da Nóbrega (1556)
NUGUEIRA: Pois digo-vos, Irmão meu, que me meteis em comfussão. E como saberei eu que trabalho por seu amor, se eu vejo que trabalho pera quem não no ama, nem no conhece?
GONÇALO ALVAREZ: Conhece logo o Senhor, por quem vós aveis de fazer que desejais vós que o conheção, amem e sirvão todos estes e todo o mundo.
NUGUEIRA: Desejo serto, e sempre lhe pesso que elle seja sanctificado, de todos conhecido e amado, pois hé muita rezão que a criatura conheça a seu Criador, pois todo o ser e perfeição elle lhe comunicou, e a criatura rational sobre todas o conheça e honre; pera ella forão criadas e feitas todas as cousas, e hé obrigada a ser a boca de todas pera louvar a Deus, por tamanho bem, que de tudo o fez senhor.
GONÇALO ALVAREZ: Pois, meu Irmão, isso me parece que basta pera se Deus contentar de vosso serviço ou sacrificio; chamo-lhe assi porque esse vosso oficio parece que vos faz o sacrifficio que na Lei Velha se chamava holocausto, que ardia todo e nada se dava a ninguem delle.
NUGUEIRA: Irmão, não digais isso por amor de Deus, não hé bem que hum peccador, como eu, ouça isso de tão inperfecto serviço como faz a Deus, e mais que ouvi eu já que isso era figura do amor grande com que o Filho de Deus ardeu en fogo de charidade por nós na crux.
GONÇALO ALVAREZ: Assi hé, perdoai-me, Irmão, que a humildade não sofre bem louvores, e eu descuidei-me.
NUGUEIRA: Agora me amastes bem! Chamais humildade à viva soberba! Não sejais vós como o Padre ou Irmão que o P.e Leonardo Nunez, que está em glória, nos contava que por se desculpar se emmelava como mosca no mel.
GONÇALO ALVAREZ: Oxalá estivesse eu tanto avante que me parecese eu com elle, que hé sancto. Mas tornemos ao proposito. Irmão Nuguera, por amor de N. Senhor que livremente e segundo o que entendeis diante de N. Senhor digais: que vos parece deste gentio segundo a experientia que tendes delle os annos que há que com elles conversais?
NUGUEIRA: Que aproveita conversar, que os não entendo? Ainda que, segundo me parece delles, pera estes fim de se comverterem e serem christãos não há mister muita inteligentia, porque as obras mostrão quão poucas mostras elles tem de o poder vir a ser.
GONÇALO ALVAREZ: Logo, de que me aproveita a mim a minha lingoa?
NUGUEIRA: Ha, ha, ha...Sabeis de que me rrio? De me preguntardes de que aproveita a vossa lingoa, porque vos pregunto: de que aproveita a minha forija?
GONÇALO ALVAREZ: Ya vos eu respondi a essa pregunta.
NUGUEIRA: Tomai a mesma reposta.
GONÇALO ALVAREZ: Não, que os oficios são diferentes, porque o meu hé falar, o vosso fazer.
NUGUEIRA: Não hé logo diferente o fim, porque cada hum de nós á-de fazer o seu.
GONÇALO ALVAREZ: E qual hé esse fim?
NUGUEIRA: A charidade ou amor de Deus e do proximo.
GONÇALO ALVAREZ: E vós, Irmão, sois já theologo?
NUGUEIRA: Alguma cousa se me á-de pegar de meus Padres, pois lhe eu pego quando se chegão a mim das mascarras do carvão da forja, e queira o Senhor que com meu mao viver não lhe pegue algum escandalo, ainda que pois são espirituais, ensinados estão a sofrer os emfermos e fraquos.
GONÇALO ALVAREZ: Dizei-me, Irmão Nugueira, esta gente são proximos?
NUGUEIRA: Parece-me que ssi.
GONÇALO ALVAREZ: Por que rezão?
NUGUEIRA: Porque nunqua me acho senão com elles, e com seus machados e fouces.
GONÇALO ALVAREZ: E por isso lhe chamais proximos?
NUGUEIRA: Si, porque proximos, chegados quer dizer, e elles sempre se chegão a mim, que lhes faça o que am mister, e eu como a proximos lhos faço, cuidando que cumpro o preseito de amar ao proximo como a mim mesmo, pois lhe faço o que eu queria que me fizessem, se eu tivesse a semelhante necessidade.
GONÇALO ALVAREZ: Pois a pessoas mui avisadas ouvi eu dizer que estes não erão proximos, e porfião-no muito, nem tem pera si que estes são homens como nós.
NUGUEIRA: Bem! Se elles não são homens, não serão proximos, porque soos os homens, e todos, maos e boons, são proximos. Todo o homem hé huma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua alma, e este ouvi eu dizer que era proximo. Prova-se no Evangelho do Samaritano, onde diz Christo N. S. que aquelle hé proximo que usa de misericordia.
GONÇALO ALVAREZ: Deveis de ter boa memoria, porque vos lembrão bem as cousas que ouvis. Ouvistes já disputar entre os Irmãos ou falar nisto, em que praticamos da conversão destes gentios?
NUGUEIRA: Muitas vezes, ou quasi sempre, entre meus Irmãos se fala disso, e vós bem o sabeis, pois sois de casa. Cada hum fala de seu officio, e como elles não tem outro, senão andar trás esta ovelha perdida, sempre tratão dos inpedimentos que achão pera a trazer.
GONÇALO ALVAREZ: E que comcruem ou em que se detreminão os mais dos que nesse officio andão, das partes que achão nestas gentes pera virem à nossa sancta fee?
NUGUEIRA: Todos remetem o feito a Deus, e determinão de morrer na demanda, porque a isso são obrigados, assi porque a obedientia lho manda, como porque
(continua...)
NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. Com preliminares e anotações históricas e críticas de Serafim Leite. Lisboa: 1954