Por Machado de Assis (1878)
A presença de Marcos era uma troca de papéis. A acariciada era ela. D. Venância tinha seus momentos de enfado e de zanga, gostava de ralhar, de bater no próximo. Sua alma era uma fonte de duas bicas, vertia mel por uma e vinagre pela outra. Sabia que o melhor meio de aturar menos, era não imitá-la. Calava-se, sorria, aprovava tudo, com uma docilidade exemplar. Outra vezes, conforme o assunto e a ocasião, reforçava os sentimentos pessimistas da tia, e ralhava, não com igual veemência, porque ele estava incapaz de a fingir, mas na conformidade das idéias dela. Presente a tudo, não esquecia, no meio de um discurso de D. Venância, de lhe acomodar melhor o banquinho dos pés. Sabia-lhe os hábitos, e ordenava as coisas de maneira que lhe não faltasse nada. Ele era a Providência de D. Venância e o seu pára-raios. De mês em mês prestava-lhe contas; e nessas ocasiões só uma alma forte podia resistir ao suplício. Cada aluguel trazia um discurso; cada obra nova ou conserto produzia objurgatória. Ao cabo, D. Venância não ficava com a menor idéia das contas, tão ocupada estava em desabafar o seu reumatismo; e Marcos, se quisesse afrouxar um pouco a consciência, podia dar às contas certa elasticidade. Não o fazia; era incapaz de o fazer.
Quem dissesse que na dedicação de Marcos entrava um pouco de interesse, podia dormir com a consciência tranqüila, pois não caluniava ninguém. Havia afeto, mas não havia só isso. D. Venância possuía bons prédios, e tinha só três parentes.
O terceiro parente era uma sobrinha, que morava com ela, moça de vinte anos, graciosa, doida por música e confeitos. D. Venância também a estimava muito, quase tanto como a Emílio. Meditava até casá-la antes de morrer; e só tinha dificuldade em achar um noivo digno da noiva.
Um dia, no meio de uma conversa com Emílio, aconteceu-lhe dizer:
— Quando te casares, adeus tia Venância!
Esta palavra foi um raio de luz.
— Casar! pensou ela, mas por que não com a Eugênia?
Nessa noite não cuidou mentalmente de outras coisas. Marcos nunca a vira tão taciturna; chegou a supor que ela estivesse zangada com ele. D. Venância não disse, durante essa noite, mais de quarenta palavras. Olhava para Eugênia, lembrava-se de Emílio, e dizia consigo:
— Mas como é que não lembrei disso há mais tempo? Nasceram um para o outro. São bonitos, bons, jovens. — Só se ela tiver algum namoro; mas quem seria? No dia seguinte sondou a moça; Eugênia, que não pensava em ninguém, disse francamente que trazia o coração como lho haviam dado. D. Venância exultou; riu-se muito; jantou mais do que de costume. Restava sondar Emílio no dia seguinte.
Emílio respondeu a mesma coisa.
— Deveras! exclamou a tia.
— Pois então!
— Não gostas de nenhuma moça? não tens nada em vista?
— Nada.
— Tanto melhor! tanto melhor!
Emílio saiu aturdido e um pouco vexado. A pergunta, a insistência, a alegria, tudo aquilo tinha um ar pouco tranqüilizador para ele.
— Quererá casar comigo?
Não perdeu muito tempo em conjecturas. D. Venância, que, com os seus sessenta anos, receava qualquer surpresa da morte, apressara-se a falar diretamente à sobrinha. Era difícil; mas D. Venância passava por ter um gênio original, que é a coisa mais vantajosa que pode acontecer à gente, quando quer passar por cima de certas consideraeões. Perguntou diretamente a Eugênia se estimaria casar com Emílio; Eugênia, que nunca pensara em tal, respondeu que lhe era indiferente.
— Indiferente só? perguntou D. Venância.
— Posso casar.
— Sem vontade, sem gosto, só por obedecer?...
— Oh! não!
— Velhaca! Confessa que gostas dele.
Eugênia não se lembrara disso; mas respondeu com um sorriso e baixou os olhos, gesto que podia dizer muita coisa e nada. D. Venância interpretou-o como uma afirmativa, talvez porque ela preferia a afirmativa. Quanto a Eugênia, ficou abalada com a proposta da tia, mas não lhe durou muito o abalo; foi tocar música. De tarde pensou outra vez na conversa que tivera, começou a lembrar-se de Emílio, foi ver o retrato dele que havia no álbum. Realmente, entrou a parecer-lhe que gostava do moço. A tia, que o dizia, é porque o percebera. Que admira? Um rapaz bonito, elegante, distinto. Era isso; devia amá-lo; devia casar com ele.
Emílio foi menos fácil de contentar-se. Quando a tia lhe deu a entender que havia uma pessoa que o amava, teve um sobressalto; quando lhe disse que era uma moça, teve outro. Céus! um romance! A imaginação de Emílio construiu logo vinte capítulos, cada qual mais cheio de luas e miosótis. Enfim, soube que se tratava de Eugênia. A noiva não era de desprezar; mas tinha o defeito de ser um santo de casa.
— E escusas de fazer essa cara, disse D. Venância; eu já percebi que gostas dela.
— Eu?
— Não; hei de ser eu.
— Mas, titia...
— Deixa-te de partes! Já percebi. Não me zango; pelo contrário, aprovo e até desejo.
Emílio quis recusar de uma só vez; mas era difícil; tomou a resolução de contemporizar. D. Venância, a muito custo, concedeu-lhe oito dias.
— Oito dias! exclamou o sobrinho.
— Em menos tempo fez Deus o mundo, redargüiu D. Venância sentenciosamente. Emílio sentiu que a coisa era um pouco dura de roer assim feita às pressas. Comunicou suas impressões ao irmão. Marcos aprovou a tia.
— Também tu?
— Também. A Eugênia é bonita, gosta de ti; titia faz gosto. Que mais queres?
(continua...)