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#Contos#Literatura Brasileira

O Homem que sabia javanês

Por Lima Barreto (1911)

vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao

meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bale, onde vai representar o

Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e

outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria

representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse

chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no

testamento.

Pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia

meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para

fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas:

Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic

Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama

crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito

que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação

dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do

interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos

sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do

Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e

moderna...

— Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.

— Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio

de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.

— E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.

— Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito,

um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram

diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os

respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui

afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem

ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era

javanês — uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia!

Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-

guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bale o

meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me

desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara

que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do

tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas

obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bale,

em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um

banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive

o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do

crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e,

ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o

presidente da república, dias depois, convidava-me para almoçar em sua

companhia.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis

anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da

Malaia, Melanésia e Polinésia.

8

— É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser ?

— Que?

— Bacteriologista eminente. Vamos?

— Vamos

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