Por Lima Barreto (1911)
— O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou
discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a
ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a
coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a
admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele
não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah!
onde estava !”
O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era
desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar
diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão
estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me
que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava
entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse.
Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias
bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas
bobagens !...
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia
aos seus olhos !
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o
ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu
parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu
javanês; e eu estive quase a crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me
aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor
foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru,
para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha
fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual! retrucava ele. Vá,
menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos
Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe
javanês — que portento!"
Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um
destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos
diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"
O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu
sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-
nez no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua
pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem,
disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se
presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas
(continua...)