Variação linguística
A sociolinguística, especialmente em sua vertente variacionista, inaugurada pelos trabalhos seminais de William Labov nos anos 1960, representa uma ruptura paradigmática com a visão da língua como um sistema abstrato, homogêneo e idealizado (a langue saussuriana ou a competência chomskyana). O postulado fundamental deste campo é que a variação e a mudança linguística não são aleatórias ou caóticas, mas sim estruturadas, sistemáticas e correlacionadas a fatores da organização social. A língua, em seu uso efetivo, é uma entidade de heterogeneidade ordenada. Este texto aprofunda os conceitos-chave, os métodos de investigação e as ferramentas de análise que permitem à sociolinguística descrever e explicar essa complexa interação entre estrutura linguística e estrutura social.
Gênese e conceitos fundamentais da variação
A existência da variação é inerente à natureza da linguagem. Sua gênese pode ser atribuída a fatores internos ao sistema linguístico (como a busca por economia articulatória ou a regularização de paradigmas por analogia) e a fatores externos, de ordem social e histórica (como o contato entre povos, a migração, a estratificação social e a construção de identidades grupais). Para capturar essa realidade, a teoria variacionista se assenta em três conceitos operativos:
- **Variável Linguística:** É o *locus* da variação, um ponto específico na estrutura da língua que admite realizações alternativas. Uma variável pode ser fonológica (ex: a realização do /s/ em coda silábica), morfossintática (ex: a concordância verbal de 3ª pessoa do plural) ou lexical (ex: o item para "tangerina"). Para ser considerada uma variável sociolinguística, suas realizações devem ser semanticamente equivalentes, ou seja, não alterar o significado referencial básico do enunciado.
- **Variante:** É cada uma das realizações ou formas concretas que a variável pode assumir. Por exemplo, para a variável "realização do /s/ em coda", as variantes no português brasileiro podem ser a sibilante alveolar [s], a palatal [ʃ] ou o seu apagamento [Ø]. A escolha entre as variantes é o que está sujeito ao condicionamento de fatores linguísticos e sociais.
- **Princípio da Contabilidade (Accountability):** Proposto por Labov, este princípio exige que todas as ocorrências de uma variável, dentro de um envelope de variação definido, sejam consideradas na análise, e não apenas os casos que confirmam uma hipótese. Isso garante o rigor quantitativo e a validade das generalizações.
- **Tipologias e Dinâmicas das Variantes**
As variantes não são neutras; elas carregam valores sociais e se inserem em dinâmicas de estabilidade e mudança.
- **Padrão vs. Não Padrão:** Esta dicotomia remete à existência de uma **norma padrão**, uma variedade linguística historicamente associada aos grupos de maior poder e prestígio social, codificada em gramáticas e ensinada na escola. As variantes **não padrão** são aquelas que divergem dessa norma e são frequentemente usadas por grupos com menor capital simbólico. É crucial entender que o padrão é um socioleto, e sua superioridade não é inerente, mas socialmente construída.
- **Conservadoras vs. Inovadoras:** Esta classificação é diacrônica. Variantes **conservadoras** representam um estágio mais antigo da língua, enquanto as **inovadoras** são formas novas que surgem e se espalham pela comunidade de fala. Uma inovação que se estabelece e substitui a forma antiga configura uma **mudança linguística**. O processo de difusão de uma inovação frequentemente segue um padrão de **curva em S**, começando lentamente, acelerando e depois estabilizando-se.
- **Estigmatizadas vs. de Prestígio:** A avaliação social das variantes é um aspecto central. Variantes **estigmatizadas** são aquelas que recebem uma avaliação social negativa, tornando-se alvo de preconceito. Em contrapartida, as de **prestígio** são socialmente valorizadas. O prestígio pode ser de dois tipos:
* **Prestígio Aberto (Overt Prestige):** Associado às formas da norma padrão, reconhecido conscientemente por toda a comunidade. * **Prestígio Encoberto (Covert Prestige):** Associado a variantes não padrão que funcionam como marcadores de identidade e pertencimento a um grupo local ou a uma subcultura (ex: gírias, sotaques locais), cujo valor é reconhecido "por baixo dos panos" pelos membros do grupo.
- **2. Metodologia de Coleta e Tratamento de Dados**
A Sociolinguística desenvolveu um rigoroso aparato metodológico para acessar a fala o mais próximo possível de sua forma vernácula (o estilo mais espontâneo e menos monitorado).
- **Métodos de Coleta:** A **entrevista sociolinguística** é a ferramenta clássica. Ela é tipicamente estruturada em módulos para elicitar diferentes estilos de fala (variação diafásica):
1. **Conversação Livre:** Perguntas sobre temas de interesse do informante (trabalho, família, lazer) para obter o vernáculo. 2. **Leitura de um Texto Coerente:** Estilo mais monitorado. 3. **Leitura de Listas de Palavras:** Estilo de maior monitoramento, onde a atenção à forma é máxima. 4. **Teste de Pares Mínimos:** Para avaliar a percepção e produção de contrastes fonológicos.
- **Seleção de Informantes: População e Amostragem**
A definição da **população** e a construção da **amostra** são cruciais. A **amostragem aleatória** é o ideal teórico, mas frequentemente impraticável. A **amostragem por cotas (ou estratificada)** é a mais comum, buscando replicar na amostra as proporções de diferentes grupos sociais (por sexo, idade, escolaridade, etc.) existentes na comunidade. Uma alternativa é a **amostragem por redes sociais** (Milroy, 1980), que investiga os falantes a partir de suas conexões reais em uma comunidade, sendo poderosa para estudar os mecanismos de difusão de inovações.
- **Desafios Metodológicos:**
* **Paradoxo do Observador:** O ato de observar a fala a altera. Para mitigá-lo, Labov propôs técnicas como: fazer perguntas que evoquem forte conteúdo emocional (as famosas narrativas de "perigo de morte"), gravar o informante em interação com pares (e não apenas com o entrevistador) e garantir que o tópico da conversa seja engajador, desviando a atenção da forma da linguagem. * **Representatividade:** A amostra deve ser representativa para que os resultados possam ser generalizados. A escolha cuidadosa dos critérios de estratificação e do número de informantes é fundamental para a validade externa da pesquisa. * **Transcrição:** Os dados gravados são transcritos seguindo um protocolo rigoroso. A transcrição pode ser fonética ou ortográfica, a depender do fenômeno estudado, e deve ser consistente para permitir a codificação e análise quantitativa.
- **3. Metodologia de Análise de Dados**
A análise sociolinguística visa identificar a correlação estatística entre a variação linguística e os fatores condicionadores.
- **O Envelope da Variação:** O primeiro passo é a definição precisa de todos os contextos em que a variação pode ocorrer. Por exemplo, ao estudar a variação do /r/ em "cantar", o envelope inclui todas as palavras onde o /r/ aparece em coda silábica, mas exclui os casos em que ele está em onset, como em "caro", pois ali a variação não ocorre.
- **Codificação das Variáveis:** Os dados são codificados para variáveis **dependentes** (as variantes linguísticas) e **independentes** (os fatores condicionadores).
* **Variáveis Linguísticas (Fatores Internos):** Fatores do próprio sistema linguístico que influenciam a escolha da variante. Ex: o segmento fonético seguinte, a posição na palavra (medial/final), a classe gramatical, a estrutura silábica, etc. * **Variáveis Não Linguísticas (Fatores Externos/Sociais):** * **Idade:** Essencial para a análise da **mudança em tempo aparente**, que assume que as diferenças entre as faixas etárias de uma amostra refletem um processo de mudança em curso (os padrões dos mais jovens indicariam o futuro da língua). * **Classe Social/Escolaridade:** Variáveis de forte poder preditivo, geralmente medidas por um índice que combina renda, nível de instrução e profissão. * **Gênero/Sexo:** Estudos mostram padrões de gênero recorrentes. Por exemplo, mulheres tendem a ser mais sensíveis à norma padrão em fenômenos estáveis, mas frequentemente lideram tanto as inovações de prestígio (mudança por cima) quanto as vernaculares (mudança por baixo).
- **Análise Quantitativa e Regra Variável:** O tratamento dos dados é estatístico. Utiliza-se a **análise de regra variável**, operacionalizada por programas como o **GoldVarb** ou o pacote **Rbrul** para a linguagem R. Este modelo estatístico calcula o **peso relativo** (ou probabilidade) de cada fator, indicando sua força para favorecer ou desfavorecer a aplicação de uma variante. Um peso relativo acima de .50 indica que o fator favorece a variante em estudo; abaixo de .50, desfavorece; e em .50, tem efeito neutro. Isso permite hierarquizar a importância dos fatores linguísticos e sociais.
- **4. Tipos de Variação e sua Intersecção**
- **Variação Diatópica (Espacial):** Variação entre diferentes regiões geográficas. É a base dos estudos da Dialetologia, mas na Sociolinguística é tratada como mais uma variável social, que interage com as outras.
- **Variação Diastrática (Social):** Variação entre diferentes grupos ou estratos sociais, definida por fatores como classe, idade, gênero e escolaridade. É o foco principal da Sociolinguística Variacionista.
- **Variação Diafásica (Estilística/Situacional):** Variação no uso da língua por um mesmo falante, dependendo do grau de formalidade da situação comunicativa. A capacidade de adequar o registro à situação é parte da competência comunicativa do falante.
Esses eixos não são excludentes. Uma variante pode ter uma origem diatópica, adquirir uma marcação diastrática (ser mais usada por um grupo social específico) e ser empregada de forma distinta em diferentes contextos diafásicos.
- **5. Análise Aprofundada de Exemplos no Português Brasileiro**
- Exemplo 1: Concordância Verbal de 3ª Pessoa do Plural**
- **Variável:** Presença/Ausência da desinência de plural "-m" no verbo quando o sujeito é plural.
- **Variantes:** [Presença] ("Os meninos *brincam*") vs. [Ausência] ("Os menino *brinca*").
- **Análise:** A variante de ausência é uma das mais estigmatizadas do português brasileiro. A análise quantitativa mostra que ela é fortemente condicionada por:
* **Fatores Sociais:** Altamente favorecida por baixa escolaridade e em classes sociais populares. * **Fatores Linguísticos:** Favorecida quando o sujeito está anteposto e adjacente ao verbo ("*Os menino* brinca"); desfavorecida quando o sujeito está posposto ("Brinca *os menino*") ou quando há material linguístico entre o sujeito e o verbo ("Os menino, *que chegaram ontem,* brinca"), pois a redundância da marca se torna mais funcional. * **Dinâmica:** Trata-se de uma regra variável estável na gramática do português brasileiro vernáculo.
- Exemplo 2: Palatalização das Oclusivas /t, d/ Diante de /i/**
- **Variável:** Realização das oclusivas alveolares /t/ e /d/ antes da vogal /i/.
- **Variantes:** Alveolar [t, d] (ex: "leite", "dia") vs. Palato-alveolar africada [tʃ, dʒ] (ex: "leitchi", "djia").
- **Análise:**
* **Fatores Diatópicos:** É um dos marcadores dialetais mais salientes. A variante palatalizada é categórica em algumas regiões (como Rio de Janeiro) e praticamente ausente em outras (como no Nordeste). * **Fatores Linguísticos:** O processo é condicionado pelo contexto fonológico de forma categórica: só ocorre diante da vogal /i/ (seja ela subjacente, como em "tia", ou resultante do alçamento da vogal /e/ átona final, como em "leite"). * **Fatores Diafásicos/Diastráticos:** Em regiões onde a palatalização não é a norma, seu uso pode ser um marcador de identidade ou, inversamente, ser evitado em estilos monitorados.
- **6. Referências Bibliográficas (Padrão ABNT)**
BAGNO, Marcos. **Preconceito linguístico:** o que é, como se faz. 55. ed. São Paulo: Loyola, 2013.
CAMACHO, Roberto Gomes. A sociolinguística variacionista. *In:* FIORIN, José Luiz (Org.). **Introdução à Linguística II:** princípios de análise. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2014. p. 131-154.
GUY, Gregory; ZILLES, Ana Maria. **Sociolinguística quantitativa:** instrumental de análise. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
LABOV, William. **Padrões sociolinguísticos.** Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MOLLICA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. (Orgs.). **Introdução à Sociolinguística:** o tratamento da variação. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2013.
SCHERRE, Maria Marta Pereira; DIAS, Edilene Patrícia. A metodologia sociolinguística. *In:* VIEGAS, Maria do Carmo (Org.). **Estudos de Sociolinguística.** Brasília: Editora UnB, 2007. p. 11-41.
TARALLO, Fernando. **A pesquisa sociolinguística.** 7. ed. São Paulo: Ática, 2000.
WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. **Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística.** Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.