Padronização linguística

De Letropédia

A norma-padrão é um construto idealizado, composto por regras prescritivas de uso, predominantemente na modalidade escrita, que serve como referência legitimadora dentro de uma comunidade linguística.

História: origem dos padrões linguísticos

A criação de uma norma-padrão é um processo político, não um fenômeno natural da língua. A padronização é uma intervenção deliberada sobre a língua, geralmente associada à formação dos Estados-Nacionais. Unificar a língua era (e é) uma forma de unificar o território, a administração, a educação e a identidade nacional.

O processo de padronização teve início na Europa no fim do século XV, em meio ao fortalecimento dos Estados centrais, quando se buscava uma unidade linguística suprarregional. Gramáticas e dicionários passaram a exercer função normativa, validando um padrão considerado correto. Em contextos nacionais consolidados — como França e Espanha —, o dialeto de prestígio regional foi elevado à condição de norma-padrão com o apoio estatal [1].

No Brasil, a padronização se articulou a partir dos séculos XVIII e XIX. A fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1897 foi um marco na tentativa de estabelecer uma autoridade sobre a língua, espelhando-se na Academia Francesa. As reformas e acordos ortográficos, por sua vez, foram decisões políticas que visavam unificar a escrita entre Brasil e Portugal, muitas vezes com interesses econômicos e de mercado editorial subjacentes.

A padronização acompanha processos de construção estatal e imperial. A história das políticas linguísticas mostra três vetores principais:

  • Formação dos Estados-Nação: a unificação linguística foi estratégia central na consolidação do poder estatal. A França jacobina eliminou sistematicamente as línguas regionais através da educação obrigatória. O lema "Une langue, une nation" (Uma língua, uma nação) justificou séculos de política linguística assimilacionista.
  • Imperialismo e colonialismo linguísticos: as potências coloniais impuseram suas línguas como instrumentos de dominação cultural. O inglês, francês, espanhol, português e holandês se espalharam não por superioridade intrínseca, mas através da força política e militar. O "linguistic imperialism" (imperialismo linguístico) de Robert Phillipson analisa como o inglês mantém sua dominação global através de estruturas de poder econômico e político.
  • Construção de identidades nacionais: Benedict Anderson, em "Comunidades Imaginadas", mostra como a padronização linguística foi fundamental para criar o sentimento de pertencimento nacional. A "invenção" de tradições linguísticas serviu para legitimar projetos políticos específicos.

Processo: como se constitui a norma-padrão

Einar Haugen identificou quatro processos na padronização linguística:

  1. Seleção: Escolha de uma variedade como base, geralmente associada ao poder político, econômico ou cultural
  2. Codificação: Fixação de regras em gramáticas e dicionários
  3. Implementação: Difusão através de instituições (escola, mídia, Estado)
  4. Elaboração: Desenvolvimento de registros especializados

Esse processo pode ocorrer de forma “natural”, impulsionado por centros de poder, ou por ações políticas deliberadas.

Mecanismos de disseminação e controle

James Milroy distingue entre:

  • Padronização (standardization): Processo histórico de imposição
  • Ideologia do padrão (standard ideology): Conjunto de crenças que legitimam o padrão

Os principais mecanismos de disseminação e controle são:

  • Institucionalização: adoção da norma em documentos oficiais, ensino e gramáticas normativas.
  • Mídia e cultura letrada: circulação em jornais, rádio, TV e literatura que legitime o uso da norma.
  • Educação formal: escola como canal de transmissão e ferramenta de legitimidade.
  • Autoridade simbólica: atuação de gramáticos, escritores e "autoridades da língua" que moldam o que é considerado normativo.

Vantagens e problemas

Vantagens

  1. Facilita a comunicação padrão entre falantes de diferentes variedades linguísticas, promovendo coesão social.
  2. Funciona como instrumento crucial na educação formal, oferecendo clareza e credibilidade em contextos acadêmicos e profissionais.
  3. Sustenta literatura, ciência e cultura escrita, permitindo circulação cultural ampla.

Problemas

  1. A norma-padrão reflete o prestígio de classes dominantes e pode marginalizar variedades regionais e populares.
  2. Gera preconceito linguístico contra falantes de variedades não padrão.
  3. Favorece rigidez normativa, ignorando a diversidade e mudança da língua.
  4. Em contextos plurilíngues, como em Moçambique, pode gerar conflitos ao impor padrões europeus [2].

Normatização, padronização e fatores políticos

O processo de padronização complicadores que tornam crucial distinguir três conceitos:

  1. Norma Padrão: É um modelo linguístico idealizado, codificado nas gramáticas normativas e nos dicionários. É uma construção política e social que serve como referência para a unificação da língua, especialmente na escrita formal e em contextos institucionais. Frequentemente, a norma-padrão se baseia em usos literários do passado e não reflete o uso real de nenhum grupo social.
  2. Norma Culta: Segundo o linguista Carlos Alberto Faraco, a norma culta é o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso de falantes letrados em situações monitoradas de fala e escrita. A norma culta é uma norma de uso, viva e variável, e não se confunde com a norma-padrão. Por exemplo, na norma culta falada no Brasil, é comum iniciar frases com pronomes oblíquos ("Me dá um copo d'água") ou usar o pronome "ele(a)" como objeto direto ("Eu vi ela na rua"), usos condenados pela norma-padrão.
  3. "Norma Curta": Faraco cunhou este termo para se referir à visão empobrecida e autoritária da norma linguística que circula no senso comum e em parte da mídia. A "norma curta" é reducionista, inflexível e se apega a um pequeno conjunto de regras gramaticais (crase, colocação pronominal, concordância verbal) como se fossem a totalidade da língua, ignorando a complexidade da variação e da adequação linguística. É a "norma curta" que alimenta a maior parte do preconceito linguístico.

Repressões históricas e políticas de assimilação

  • Espanha Franquista (1939-1975): O regime de Franco proibiu o uso público do catalão, galego, basco e aragonês. A repressão incluía multas, prisões e até execuções por uso de "línguas regionais". Professores eram obrigados a castigar fisicamente crianças que falassem suas línguas maternas.
  • Brasil - Estado Novo (1937-1945): A campanha de nacionalização forçada proibiu o uso de alemão, italiano, japonês e outras línguas de imigrantes. Escolas foram fechadas, jornais censurados e cidadãos presos por "crime de falar língua estrangeira".
  • Turquia Kemalista: A construção da identidade turca moderna incluiu a sistemática repressão do curdo, do árabe e de outras línguas minoritárias. A política de "Uma língua, uma nação" resultou em décadas de perseguição linguística.
  • Estados Unidos - Movimento "English Only": Desde os anos 1980, movimentos conservadores promovem leis declarando o inglês como "língua oficial", visando restringir o uso público do espanhol e outras línguas de imigrantes

Referências

Bibliografia

  • BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Sociolinguística: variação, uso e mudança. São Paulo: Parábola, 2014.
  • BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O português do Brasil urbano. São Paulo: Parábola, 2019.
  • CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
  • FARACO, Carlos Alberto; ZILLES, Ana Maria Stahl. Gêneros orais e normas linguísticas. In: Linguística aplicada, ensino e aprendizagem de línguas. Campinas: Pontes, 2017.
  • GAMA, Inês. Variação e norma linguística. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/ensino/variacao-e-norma-linguistica/4785. Acesso em: 07 set. 2025.
  • TIMBANE, Arlindo António; BERLINCK, Rosane de Andrade. A norma-padrão europeia de português e os problemas de ensino em Moçambique. Gragoatá, v. 17, n. 32, 2012.
  1. CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
  2. TIMBANE, Arlindo António; BERLINCK, Rosane de Andrade. A norma-padrão europeia de português e os problemas de ensino em Moçambique. Gragoatá, v. 17, n. 32, 2012.