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A independência criou a necessidade de construir uma '''identidade nacional''' distinta de Portugal. Paradoxalmente, isso levou a duas tendências opostas: o '''[[nativismo linguístico]]''' de autores como [[José de Alencar]], que defendia um "português brasileiro", e o '''[[purismo lusitano]]''' de [[Rui Barbosa]] e outros, que consideravam o português brasileiro "corrompido". | A independência criou a necessidade de construir uma '''identidade nacional''' distinta de Portugal. Paradoxalmente, isso levou a duas tendências opostas: o '''[[nativismo linguístico]]''' de autores como [[José de Alencar]], que defendia um "português brasileiro", e o '''[[purismo lusitano]]''' de [[Rui Barbosa]] e outros, que consideravam o português brasileiro "corrompido". | ||
A partir de 1850, a chegada de '''imigrantes''' alemães, italianos, poloneses, ucranianos e outros grupos criou um Brasil multilíngue, especialmente no Sul. Comunidades inteiras mantinham suas línguas de origem, criando tensões com o projeto de unificação nacional. | A partir de 1850, a chegada de '''imigrantes''' alemães, italianos, poloneses, ucranianos e outros grupos criou um Brasil multilíngue, especialmente no Sul. Comunidades inteiras mantinham suas línguas de origem, criando tensões com o projeto de unificação nacional. O Rio Grande do Sul chegou a ter mais de 300 escolas alemãs, e Santa Catarina possuía regiões onde o alemão era mais falado que o português. Essa diversidade seria brutalmente reprimida décadas depois. | ||
O Rio Grande do Sul chegou a ter mais de 300 escolas alemãs, e Santa Catarina possuía regiões onde o alemão era mais falado que o português. Essa diversidade seria brutalmente reprimida décadas depois. | |||
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Edição atual tal como às 16h05min de 4 de setembro de 2025
Preconceito Linguístico[editar]
Preconceito linguístico é a discriminação social que tem como base as variedades linguísticas de um indivíduo, manifestando-se por meio de juízos de valor negativos, depreciativos e, por vezes, jocosos, que associam determinadas formas de falar a uma suposta inferioridade cultural, intelectual ou social. Este fenômeno transcende fronteiras nacionais e linguísticas, constituindo-se como um mecanismo universal de exclusão social que opera através da linguagem.
Sob uma perspectiva sociolinguística, o preconceito linguístico não é uma questão de "erro" gramatical, mas um instrumento político de dominação que reflete e reforça desigualdades sociais, econômicas e culturais. As variedades linguísticas mais estigmatizadas são, invariavelmente, aquelas faladas por grupos socialmente marginalizados: minorias étnicas, classes trabalhadoras, populações rurais, imigrantes e comunidades periféricas.
A variação linguística e o processo de estigmatização[editar]
A Sociolinguística, campo de estudo que investiga a relação entre a língua e a sociedade, parte do princípio de que toda língua é heterogênea e variável. A variação ocorre em todos os níveis da estrutura linguística (fonético, fonológico, morfológico, sintático, lexical e pragmático) e é influenciada por fatores sociais como:
- Geográficos (variação diatópica): Diferenças regionais, como o uso de "aipim", "macaxeira" ou "mandioca" para o mesmo tubérculo, ou as distintas pronúncias do "r" em diferentes partes do Brasil.
- Sociais (variação diastrática): Diferenças associadas à classe social, grau de escolaridade, idade, gênero, entre outros. Por exemplo, o uso da concordância verbal não padrão, como em "nós vai", é mais comum em falantes de classes populares com menor acesso à educação formal.
- Estilísticos (variação diafásica): Adequação da linguagem ao contexto comunicativo, que pode ser mais formal ou informal. Um juiz em um tribunal utiliza uma linguagem diferente da que usa em uma conversa com amigos.
- Históricos (variação diacrônica): Mudanças que ocorrem na língua ao longo do tempo, como a passagem de "vossa mercê" para "vosmecê", "você" e, mais recentemente, "cê".
O preconceito linguístico surge quando uma dessas variantes, geralmente a utilizada pelos grupos de maior prestígio social, político e econômico, é eleita como a única forma "correta" e "aceitável" da língua. As demais variantes, especialmente as associadas a grupos de menor prestígio, passam por um processo de estigmatização, sendo rotuladas como "erradas", "feias", "pobres" ou "ignorantes".
Desconstruindo os mitos do preconceito linguístico[editar]
Marcos Bagno, em sua obra seminal "Preconceito Linguístico: o que é, como se faz", identifica e desconstrói uma série de mitos que alimentam a discriminação:
- Mito nº 1: "A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente". A ideia de que o português falado no Brasil é uma língua homogênea e uniforme é falsa. A diversidade de sotaques, vocabulários e construções sintáticas é a verdadeira realidade. A escola, ao impor uma única norma como "o português", ignora essa diversidade e contribui para o preconceito.
- Mito nº 2: "Só em Portugal se fala bem português" (Eurocentrismo). Este mito revela um complexo de inferioridade cultural. O português brasileiro é uma língua tão válida e complexa quanto o português europeu, com sua própria história e desenvolvimento. A suposta superioridade da variante europeia é um resquício da mentalidade colonial.
- Mito nº 3: "Português é muito difícil". Nenhuma língua é intrinsecamente fácil ou difícil para seus falantes nativos. A percepção da dificuldade do português está frequentemente ligada à confusão entre a língua que se fala (a norma de uso) e o conjunto de regras impostas pela gramática normativa tradicional (a norma-padrão).
- Mito nº 4: "As pessoas sem instrução falam tudo errado". As variedades populares não são "erros", mas sistemas linguísticos coerentes e lógicos, com suas próprias regras gramaticais. O que a gramática normativa chama de "erro" é, na verdade, uma regra diferente daquela da norma-padrão.
- Mito nº 5: "O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão". O português não é mais bem falado em determinados regiões. A análise cuidadosa das variantes regionais demonstra que nenhuma delas se ajusta perfeitamente ao ideal de língua preconizado pelas autoridades gramaticais.
- Mito nº 6: "O certo é falar assim porque se escreve assim" (Grafocentrismo). Este mito subordina a fala, que é a manifestação primária da linguagem, à escrita, que é uma representação secundária. A escrita tende a ser mais conservadora, enquanto a fala é mais dinâmica e inovadora.
- Mito nº 7: "É preciso saber gramática para falar e escrever bem" (Gramaticismo). O conhecimento metalinguístico (saber classificar orações, por exemplo) não é um pré-requisito para o uso proficiente da língua. A fluência oral e escrita se adquire com a prática social e a exposição a diversos textos, e não com a memorização de regras gramaticais.
- Mito nº 8: "O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social". Nem mesmo o topo da pirâmide social fala a língua prescrita pelos gramáticos.
Normatização, padronização e fatores políticos[editar]
A discriminação linguística é normalmente legitimada pela existência de uma norma oficial, resultado de um processo de padronização linguística. A criação de uma norma-padrão é um processo político, não um fenômeno natural da língua. A padronização é uma intervenção deliberada sobre a língua, geralmente associada à formação dos Estados-Nacionais. Unificar a língua era (e é) uma forma de unificar o território, a administração, a educação e a identidade nacional.
No Brasil, esse processo foi marcado por disputas e decisões políticas. A fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1897 foi um marco na tentativa de estabelecer uma autoridade sobre a língua, espelhando-se na Academia Francesa. As reformas e acordos ortográficos, por sua vez, foram decisões políticas que visavam unificar a escrita entre Brasil e Portugal, muitas vezes com interesses econômicos e de mercado editorial subjacentes.
No entanto, esse processo de normatização envolve complicadores que tornam crucial distinguir três conceitos:
- Norma Padrão: É um modelo linguístico idealizado, codificado nas gramáticas normativas e nos dicionários. É uma construção política e social que serve como referência para a unificação da língua, especialmente na escrita formal e em contextos institucionais. Frequentemente, a norma-padrão se baseia em usos literários do passado e não reflete o uso real de nenhum grupo social.
- Norma Culta: Segundo o linguista Carlos Alberto Faraco, a norma culta é o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso de falantes letrados em situações monitoradas de fala e escrita. A norma culta é uma norma de uso, viva e variável, e não se confunde com a norma-padrão. Por exemplo, na norma culta falada no Brasil, é comum iniciar frases com pronomes oblíquos ("Me dá um copo d'água") ou usar o pronome "ele(a)" como objeto direto ("Eu vi ela na rua"), usos condenados pela norma-padrão.
- "Norma Curta": Faraco cunhou este termo para se referir à visão empobrecida e autoritária da norma linguística que circula no senso comum e em parte da mídia. A "norma curta" é reducionista, inflexível e se apega a um pequeno conjunto de regras gramaticais (crase, colocação pronominal, concordância verbal) como se fossem a totalidade da língua, ignorando a complexidade da variação e da adequação linguística. É a "norma curta" que alimenta a maior parte do preconceito linguístico.
História do preconceito linguístico no Brasil[editar]
Período Colonial (1500-1822)[editar]
O preconceito linguístico no Brasil tem raízes profundas no período colonial, quando a imposição do português sobre as línguas indígenas e línguas africanas estabeleceu hierarquias linguísticas que persistem até hoje.
Inicialmente, os jesuítas adotaram uma política pragmática de utilização das línguas nativas, especialmente o tupi, para catequização. O padre José de Anchieta desenvolveu a primeira gramática do tupi (1595), legitimando temporariamente seu uso. Contudo, essa política mudou drasticamente com o Marquês de Pombal.
O Diretório dos Índios, promulgado pelo Marquês de Pombal em 1757, proibiu explicitamente o uso de línguas indígenas, estabelecendo multas e castigos físicos para quem falasse idiomas nativos. O documento determinava:
Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo, este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.
Esta política representou o primeiro linguicídio oficial do Brasil, eliminando centenas de línguas e estabelecendo o português como única língua legítima.
O tráfico negreiro trouxe ao Brasil falantes de centenas de línguas africanas: iorubá, quimbundo, fon, hauçá, entre outras. A política colonial de separar escravizados falantes da mesma língua visava impedir revoltas, mas resultou na criação de variedades crioulas e na influência permanente das línguas africanas no português brasileiro. Palavras como senzala (kilombo, "habitação"), caçula (kasule, "o mais novo") e moleque (mu'leke, "menino") demonstram essa influência, mas eram (e ainda são) frequentemente consideradas "menos elegantes" que termos de origem européia.
Período Imperial (1822-1889)[editar]
A independência criou a necessidade de construir uma identidade nacional distinta de Portugal. Paradoxalmente, isso levou a duas tendências opostas: o nativismo linguístico de autores como José de Alencar, que defendia um "português brasileiro", e o purismo lusitano de Rui Barbosa e outros, que consideravam o português brasileiro "corrompido".
A partir de 1850, a chegada de imigrantes alemães, italianos, poloneses, ucranianos e outros grupos criou um Brasil multilíngue, especialmente no Sul. Comunidades inteiras mantinham suas línguas de origem, criando tensões com o projeto de unificação nacional. O Rio Grande do Sul chegou a ter mais de 300 escolas alemãs, e Santa Catarina possuía regiões onde o alemão era mais falado que o português. Essa diversidade seria brutalmente reprimida décadas depois.
República Velha (1889-1930)[editar]
A República Velha, influenciada pelo positivismo, intensificou a busca pela unificação linguística. A criação da Academia Brasileira de Letras em 1897, inspirada na Academia Francesa, estabeleceu uma "autoridade" sobre a língua portuguesa no Brasil.
O preconceito contra falares regionais se institucionalizou através da educação pública. Professores eram treinados para "corrigir" sotaques regionais, especialmente nordestinos, considerados "atrasados" pela elite sudestina. Em Os Sertões (1902), O escritor Euclides da Cunha, por exemplo, refletiu essa mentalidade ao descrever o sertanejo como alguém que "fala errado", contribuindo para estigmatizar variedades nordestinas.
Era Vargas (1930-1945)[editar]
O período Vargas, especialmente durante o Estado Novo (1937-1945), implementou a mais violenta campanha de repressão linguística da história brasileira. A partir de 1938, o governo federal proibiu o uso público de línguas estrangeiras através do Decreto-Lei nº 406, que estabelecia:
- Proibição do ensino em línguas estrangeiras[1]
- Fechamento de escolas comunitárias alemãs, italianas e japonesas[2]
- Prisão de cidadãos surpreendidos falando idiomas estrangeiros[3]
- Queima pública de livros em línguas não-portuguesas[4]
- Imposição de nomes portugueses em lugar de estrangeiros (e.g.: a cidade de Neu-Württemberg, no Rio Grande do Sul, passou a se chamar Não-me-Toque)
A chamada Campanha de Nacionalização promoveu o extermínio da variedade linguística no Sudeste e Sul do Brasil:
- Santa Catarina: mais de 2.000 escolas alemãs foram fechadas. Professores foram presos, e famílias inteiras foram deportadas para campos de concentração.[5]
- Espírito Santo: a comunidade pomerana foi duramente reprimida. Idosos que não falavam português eram multados e humilhados publicamente.[6]
- São Paulo: escolas japonesas foram fechadas, e jornais em japonês foram proibidos. Durante a Segunda Guerra Mundial, japoneses foram proibidos de falar sua língua materna mesmo em casa.[7]
- Rio Grande do Sul: o Grupo Escolar Tiradentes, em Porto Alegre, criou o "Dia do Fico", quando alunos de origem alemã eram obrigados a renunciar publicamente a sua língua materna.[8]
Essa política criou traumas linguísticos intergeracionais. Muitas famílias de imigrantes passaram a ter vergonha de suas línguas ancestrais, contribuindo para o processo de substituição linguística. Estima-se que mais de 60 línguas de imigração foram extintas ou severamente ameaçadas neste período.
Manifestações contemporâneas no Brasil[editar]
O preconceito linguístico é onipresente na sociedade brasileira e se manifesta de diversas formas:
- Preconceito regional (xenofobia): A ridicularização de sotaques, especialmente o nordestino, frequentemente associado de forma pejorativa e estereotipada ao atraso e à falta de instrução.
- Preconceito social: A desqualificação de formas de falar de pessoas com baixa escolaridade ou pertencentes a classes sociais menos favorecidas. Expressões como "os menino", "a gente fumo", "pobrema" ou "dez real" são frequentemente corrigidas de forma ostensiva, ignorando a sistematicidade e a lógica da gramática da variedade popular.
- Preconceito contra a fala rural: A associação da fala de comunidades rurais a um estereótipo de "caipira", "jeca" ou "matuto", visto como sinônimo de ignorância e simplicidade excessiva.
- Preconceito geracional: O estranhamento ou a crítica a gírias e expressões utilizadas por jovens, consideradas como uma "corrupção" da língua.
- Preconceito de gênero: A expectativa de que homens e mulheres utilizem a linguagem de maneiras diferentes, com a desvalorização de traços linguísticos associados ao feminino, por exemplo.
Casos midiáticos[editar]
- Conge (2016): O ex-juiz Sérgio Moro foi amplamente ridicularizado nas redes sociais após pronunciar "cônjuge" como "conge" durante uma audiência.
- Peleumonia (2017): Um médico, em um grupo de WhatsApp, debochou de um paciente que usou a palavra "peleumonia" em vez de "pneumonia"
- Estudante indígena (UFMT, 2017): Estudante xavante foi ridicularizado por colegas devido a "erros" em português. A universidade criou programa de acolhimento linguístico após pressão do movimento indígena.
- Day McCarthy (2017): A socialite ridicularizou a forma como a filha negra de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank falava, chamando-a de macaca;
- O Outro Lado do Paraíso (2017): Na novela, o Dr. Samuel, personagem interpretado pelo ator Eriberto Leão, falava com um sotaque nordestino considerado por muitos como caricatural e estereotipado, reforçando a ideia de que o sotaque regional é algo "exótico" ou "não-urbano", em vez de uma marca legítima da identidade de uma pessoa, independentemente de sua profissão ou classe social.
- MC Kevin (2019): O rapper foi criticado em programa de TV por "falar errado". Sua resposta viralizou: "Minha linguagem representa minha comunidade. Querer que eu mude é querer apagar minha identidade".
- Juliette (2021): Juliette Freire, participante paraibana do Big Brother Brasil, foi sistematicamente ridicularizada por outros participantes devido a seu sotaque e expressões regionais. Comentários como "que língua é essa?" e imitações jocosas de sua fala revelaram o profundo preconceito anti-nordestino. O caso ganhou repercussão nacional quando Juliette confrontou os agressores: "Vocês ficam imitando meu sotaque como se fosse motivo de chacota. Isso é preconceito linguístico e xenofobia".
- Basculho (2021): O economista Gil do Vigor, um homem gay que utilizava expressões do pajubá, o socioleto da comunidade LGBTQIA+ brasileira, foi duramente criticado por usar a palavra "basculho", sendo acusado de "falar errado" e "inventar palavras".
- Zorra Total: Quadros como "Zé Bonitinho" e "Delegado Paranhos" sistematicamente ridicularizavam sotaques nordestinos, associando-os à violência e ignorância.
- Pânico na TV: O programa criou personagens estereotipados baseados em preconceitos linguísticos regionais, sendo criticado por organizações de direitos humanos.
- Redes sociais: durante eleições, candidatos nordestinos ou pouco escolarizados enfrentam ataques sistemáticos por sua forma de falar. Comentários como "fala direito" ou "aprende português" revelam a instrumentalização política do preconceito linguístico.
Institucionalização do preconceito[editar]
Sistema educacional[editar]
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que norteia o currículo escolar no Brasil, é criticada por tratar a norma-padrão como a única variedade legítima da língua portuguesa, ignorando a diversidade linguística do país. Essa abordagem reforça a ideia de que o modo de falar da maioria das pessoas não é valorizado na escola.
Os livros didáticos de Português, por sua vez, têm sido historicamente avaliados por apresentarem a variação linguística de forma superficial ou distorcida. Muitas vezes, as variedades populares são abordadas apenas como "curiosidades" e não como formas legítimas de comunicação. Essa abordagem, em alguns casos, leva a exercícios de "correção" de construções populares, reforçando o preconceito linguístico.
Um exemplo notório dessa polêmica foi o caso do livro didático da EJA, Por uma Vida Melhor (2011), que foi alvo de ataques por reconhecer construções como "os livro" como válidas em determinados contextos. O episódio gerou um grande debate sobre os objetivos do ensino de língua e sobre como a escola deveria lidar com a diversidade do português brasileiro.
A formação de professores também é um ponto-chave na perpetuação do preconceito linguístico. Muitos educadores, por não terem tido acesso a estudos sobre sociolinguística, acabam reproduzindo o preconceito em sala de aula, considerando variedades populares como "erros" e corrigindo sistematicamente sotaques regionais. Essa postura, infelizmente, reforça a ideia de que a maneira de falar de determinados grupos sociais é inferior.
Em avaliações como o ENEM e outros vestibulares, a linguagem oral e as variedades regionais são frequentemente penalizadas. A cobrança rígida da norma-padrão desfavorece candidatos que utilizam, em suas redações, traços de oralidade ou de suas variedades linguísticas, podendo levar a uma pontuação mais baixa ou até mesmo a uma penalização severa por "desvio da norma".
Ainda no âmbito da avaliação, as provas de português em concursos públicos costumam incluir questões que penalizam o uso de variedades populares. A cobrança do que a gramática tradicional considera "correto" ignora que construções como "Os meninos brincou no parque" são sistemáticas e plenamente funcionais no português popular brasileiro, demonstrando um descompasso entre a avaliação e a realidade linguística do país.
Mídia e entretenimento[editar]
A teledramaturgia brasileira, em especial as novelas, frequentemente recorre a estereótipos linguísticos para caracterizar seus personagens. Essa prática perpetua a ideia de que determinadas formas de falar estão associadas a tipos específicos de pessoas. O sotaque de um personagem, por exemplo, pode ser usado para reforçar a ideia de que ele é cômico, ingênuo ou de baixo status social.
A prática do patrulhamento linguístico também é comum no jornalismo brasileiro. O telejornalismo, por exemplo, historicamente impõe um padrão de locução conhecido como "sotaque neutro", que se baseia no falar de uma elite urbana. Isso leva a uma homogeneização da fala na televisão, onde repórteres e apresentadores com sotaques regionais são raros. Em muitos casos, jornalistas são orientados a fazer cursos de "dicção" para se adequarem a esse padrão.
A imprensa escrita também contribui para essa dinâmica, com colunas e seções de "bem falar" que perpetuam a ideia de uma única maneira "correta" de usar a língua. Essas seções costumam criticar variedades populares e reforçar regras gramaticais muitas vezes já obsoletas, ignorando a dinâmica real do idioma.
Ainda que muitos jornais e emissoras busquem uma maior diversidade em sua cobertura, a cobrança por um padrão linguístico normativo permanece, mostrando o desafio de valorizar a pluralidade do português brasileiro em todos os espaços da sociedade.
Sistema judiciário[editar]
A linguagem jurídica, muitas vezes, é vista como um obstáculo para o cidadão comum. O uso de termos técnicos e jargões, como agravo, dilação, preclusão e embargos, por exemplo, torna os processos quase indecifráveis para quem não é da área. Essa linguagem hermética cria uma lacuna entre o sistema jurídico e o cidadão, que muitas vezes não consegue entender as etapas e decisões de seu próprio caso sem a ajuda de um profissional. A necessidade de traduzir o "juridiquês" para uma linguagem clara e acessível é uma demanda crescente para o sistema de justiça brasileiro.
Além disso, o ambiente jurídico, como tribunais e audiências, é formal e rígido, e a forma de falar de um indivíduo pode ser, infelizmente, um fator de julgamento. Relatos mostram que o preconceito linguístico pode afetar a percepção sobre a credibilidade e a veracidade de testemunhos e depoimentos, caso a fala do cidadão não esteja alinhada à norma-padrão.
Essa rigidez linguística pode fazer com que pessoas com variedades linguísticas diferentes, como falantes de variedades rurais ou populares, se sintam intimidadas ou tenham sua fala desvalorizada. Nesses casos, a comunicação se torna um desafio, podendo prejudicar o direito de uma pessoa de se expressar plenamente em sua própria língua.
Setor privado[editar]
A forma como uma pessoa fala pode influenciar suas oportunidades profissionais, um reflexo do preconceito linguístico que afeta a sociedade brasileira.
Durante o processo de recrutamento e seleção, o sotaque e a variedade linguística de um candidato são, por vezes, fatores de discriminação. Muitas empresas, mesmo que não de forma declarada, buscam candidatos que se alinhem a um padrão de fala considerado mais "culto" ou "neutro", que na verdade é um código para o modo de falar das classes médias urbanas. Essa preferência pode levar a uma penalização, como salários menores ou a perda de oportunidades, para quem fala uma variedade considerada "não-padrão". A exigência de "boa dicção" em anúncios de vagas, por exemplo, muitas vezes esconde uma expectativa de que o candidato tenha um sotaque específico.
O setor de telemarketing e call centers é um dos que mais evidenciam esse preconceito. Embora empregue um grande número de pessoas de diversas regiões, o setor impõe uma forte neutralização de sotaques. Funcionários são frequentemente submetidos a treinamentos para "corrigir" sua fala, e o uso de expressões e sotaques regionais pode ser proibido. Essa padronização linguística visa criar uma imagem corporativa e, ironicamente, acaba reforçando a discriminação que muitos desses trabalhadores já enfrentam. O ambiente de trabalho se torna um espaço onde a identidade linguística é suprimida em nome de uma suposta eficiência ou profissionalismo.
Impactos do preconceito linguístico[editar]
O preconceito linguístico produz sérios impactos na vida de indivíduos e grupos sociais. Os efeitos não se limitam à esfera profissional ou acadêmica, mas se aprofundam na saúde mental e no bem-estar psicossocial dos falantes.
Impactos psicossociais[editar]
Um dos principais impactos do preconceito linguístico é o desenvolvimento de um sentimento de vergonha e inadequação em relação à própria fala. Pessoas que são frequentemente corrigidas, ridicularizadas ou que percebem que seu sotaque ou vocabulário são vistos como inferiores podem desenvolver uma autocensura ou estratégias de apagamento da identidade linguística para evitar a discriminação. Elas evitam falar em público ou em situações formais para não se exporem a julgamentos. Essa prática, a longo prazo, afeta a autoestima e a confiança do indivíduo, limitando sua participação social e profissional.
A constante preocupação com o julgamento alheio pode levar ao desenvolvimento de sintomas de ansiedade social. Indivíduos que vivenciam a discriminação pela forma de falar podem se sentir desconfortáveis em interações sociais, preferindo o isolamento. O medo de cometer "erros" linguísticos ou de ter sua identidade ridicularizada torna a comunicação um fardo, em vez de um instrumento de conexão.
Impactos socioeconômicos[editar]
O preconceito linguístico no Brasil também gera desigualdade e afeta diretamente a educação, o emprego e o acesso a serviços públicos.
O ambiente escolar, que deveria promover a inclusão, muitas vezes se torna um espaço de exclusão para estudantes falantes de variedades linguísticas não-padrão. A constante correção da fala, a ridicularização e o bullying baseado em sotaques e expressões regionais podem levar a sentimentos de inferioridade e baixa autoestima, impactando diretamente o desempenho acadêmico. A pressão para se adequar a uma norma linguística imposta pode gerar insegurança e, em casos mais graves, até mesmo levar ao abandono escolar.
A discriminação linguística também pode se traduzir em salários menores para profissionais que têm a mesma função e qualificação de seus colegas, mas que são de outras regiões. Casos em que empresas são condenadas por discriminação salarial ou por demissão de funcionários que não conseguem "neutralizar" seus sotaques mostram que o preconceito linguístico é uma prática real e ilegal.
A forma como um cidadão se expressa também pode afetar seu acesso a serviços essenciais. Na área da saúde, por exemplo, o sotaque e a variedade linguística de um paciente podem impactar a qualidade do atendimento e até a precisão do diagnóstico. A falta de familiaridade dos profissionais com as particularidades da fala de diferentes regiões pode levar a um tratamento enviesado e a diagnósticos equivocados.
Resistência e movimentos de valorização[editar]
Movimentos culturais[editar]
Hip-Hop e Rap Nacional[editar]
A cultura hip-hop brasileira transformou variedades estigmatizadas em símbolos de resistência e orgulho identitário.
- Racionais MC's — grupo pioneiro que legitimou artisticamente o "português da periferia". O grupo popularizou o uso de gírias como "mano", "irmão", "truta" e "função", além de empregar estruturas sintáticas próprias da fala popular, como "Tá ligado que é isso aí". Também consolidou a prosódia específica do rap paulista. Uma música de destaque é Diário de um Detento (1997), narrada em primeira pessoa com linguagem autêntica do sistema prisional, que conquistou legitimidade artística internacional.
- Rap Nordestino — representado por diferentes vozes. O grupo Faces do Subúrbio (Fortaleza) valoriza termos regionais como "rapá", "eita", "massa" e "se aperrear". Já Criolo (São Paulo), de origem nordestina, mescla português padrão e popular, resgata expressões nordestinas em contexto urbano e discute o preconceito linguístico em suas letras.
Música Popular Brasileira[editar]
- Luiz Gonzaga — pioneiro na valorização da linguagem nordestina. Em "Asa Branca", incluiu termos regionais como "roça" e "mandacaru", legitimou a prosódia nordestina na MPB e influenciou gerações de artistas.
- Elba Ramalho — cantora paraibana que mantém seu sotaque original. Recusa-se a "neutralizar" a pronúncia em gravações, discute o preconceito anti-nordestino em entrevistas e tornou-se símbolo de resistência linguística.
- Bezerra da Silva — no samba carioca, incorporou a linguagem das favelas. Utilizou gírias ligadas ao tráfico, como "alemão", "playboy" e "mauricinho", empregou estruturas sintáticas populares e deu legitimidade artística à variedade periférica.
Literatura periférica e marginal[editar]
- Sarau da Cooperifa - Movimento literário da periferia paulista que valoriza a linguagem popular. Seu fundador, Sérgio Vaz, é poeta que utiliza gírias e estruturas populares, como no verso "Literatura, pão e poesia dividindo a mesa". Outro nome importante é Ferréz, escritor do Capão Redondo, que em Capão Pecado (2000) legitimou a linguagem periférica na literatura, apresentando personagens que falam de modo autêntico, com expressões como "os mano" e "tá ligado".
- Carolina Maria de Jesus é considerada precursora. Seu Quarto de Despejo (1960), escrito em português popular, foi inicialmente criticado por supostos "erros", mas hoje é reconhecido como documento autêntico da variedade popular. Allan da Rosa, poeta e educador, defende a legitimidade da "língua da quebrada" e desenvolve pedagogias antirracistas e anti-elitistas, usando a literatura como forma de resistência.
Movimentos sociais[editar]
- Movimento negro - A Lei 10.639/2003 incluiu história africana nos currículos, mas a valorização linguística ainda enfrenta resistência. O Projeto Baobá, de Salvador, desenvolve glossários de africanismos, cria histórias que incorporam a linguagem afro-brasileira e forma professores para combater o preconceito linguístico. Já a CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) luta pela preservação das variedades linguísticas tradicionais, promove a formação de professores quilombolas e pressiona por materiais didáticos culturalmente adequados.
- Movimento indígena - A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) defende a educação bilíngue de qualidade, combate a discriminação linguística e pressiona as universidades pela inclusão das línguas indígenas. Um exemplo foi o protesto realizado na Universidade de Brasília, em 2018, quando estudantes indígenas denunciaram práticas discriminatórias e exigiram acolhimento diferenciado, bem como respeito às variedades de português faladas em aldeias.
Iniciativas acadêmicas[editar]
- Projeto ALIB - O Atlas Linguístico do Brasil documenta a diversidade linguística nacional, mapeando variações fonéticas, lexicais e sintáticas. Sua contribuição desconstrói mitos sobre a suposta "unidade linguística" e oferece base científica para a formulação de políticas educacionais inclusivas.
- Projetos extensionistas: A UFBA, com o Projeto Vertentes, promove a formação de professores em Sociolinguística Educacional, desenvolve materiais didáticos inclusivos e realiza oficinas sobre diversidade linguística em escolas públicas. A UFRJ, por meio do Projeto PEUL, mantém um banco de dados da fala carioca popular, conduz pesquisas sobre variação e preconceito e oferece assessoria a políticas públicas educacionais. Já a USP, através do Grupo GESOL, dedica-se ao estudo do português popular paulista, à formação docente e à investigação sobre discriminação linguística no mercado de trabalho.
Políticas públicas e legislação[editar]
Constituição Federal de 1988[editar]
O Artigo 210 da Constituição Federal estabelece que "serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais". Já o Artigo 215 afirma que "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais". Embora ainda não existam decisões específicas do STF sobre direitos linguísticos, a doutrina jurídica interpreta esses dispositivos como uma forma de proteção constitucional à diversidade linguística.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)[editar]
O Artigo 32, § 3º da LDB determina que "o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem". Essa previsão representa uma proteção parcial: valoriza-se o direito das comunidades indígenas, mas permanece a limitação quanto ao reconhecimento das variedades do português falado no Brasil.
Projetos de lei em tramitação[editar]
O PLS 234/2019, de autoria do senador Jean Paul Prates, propunha a criação de um "Marco Civil dos Direitos Linguísticos". O projeto previa a criminalização da discriminação em processos seletivos, a obrigatoriedade de formação de servidores públicos e a criação de ouvidorias especializadas. No entanto, acabou arquivado em 2023.
Na Câmara, o PL 3.933/2020, apresentado pela deputada Perpétua Almeida, estabelecia a "Lei de Combate ao Preconceito Linguístico". O texto incluía a discriminação linguística na Lei do Racismo (Lei 7.716/89), estabelecendo pena de dois a cinco anos de reclusão. A aplicação abrangeria empresas, escolas e serviços públicos. O projeto foi apensado ao PL 6.442/2019, de autoria do deputado Túlio Gadêlha.
Iniciativas estaduais e municipais[editar]
A Lei 16.045/2016, do estado do Ceará, foi a primeira lei estadual de combate ao preconceito linguístico no Brasil. Ela prevê multas que variam de R$ 1.000 a R$ 10.000 em casos de discriminação, aplicáveis principalmente em estabelecimentos comerciais, além da obrigatoriedade de capacitação de servidores. Entre 2017 e 2021, foram registradas 45 autuações. Um caso emblemático ocorreu em 2018, quando uma loja de departamentos foi multada em R$ 3.000 após um gerente impedir a contratação de uma vendedora devido ao seu sotaque.
Em Salvador, a Lei Municipal 9.424/2019, conhecida como "Salvador Cidade Linguisticamente Inclusiva", estabeleceu a proibição de discriminação em concursos municipais, determinou formação obrigatória para servidores da educação e lançou a campanha "Respeita Minha Fala". A lei também prevê a produção de material didático inclusivo nas escolas municipais.
No Pará, o Decreto 2.123/2020 instituiu a Política Estadual de Valorização Linguística. A norma reconhece variedades amazônicas como patrimônio cultural, inclui a diversidade linguística nos currículos escolares, promove a formação de professores em Sociolinguística e amplia a proteção às línguas indígenas e ribeirinhas.
Políticas educacionais[editar]
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trouxe avanços limitados no campo linguístico. O documento menciona o "respeito à diversidade linguística" e inclui a "variação linguística" como objeto de conhecimento, mas mantém a norma-padrão como objetivo central. Para muitos sociolinguistas, a abordagem é superficial, carece de orientações pedagógicas específicas e mantém um viés monolingual que reforça hierarquias entre variedades.
O PNLD 2020-2023 introduziu um critério de avaliação voltado à diversidade linguística. Os livros didáticos passaram a ser obrigados a abordar a variação sem preconceito, sendo vedada a apresentação de variedades como "erro". Ao mesmo tempo, a valorização da norma culta deveria ocorrer sem a estigmatização das demais variedades. Como resultado, 67% dos livros aprovados apresentaram melhorias na forma de tratar a variação linguística em comparação ao ciclo anterior.
O papel da escola e a responsabilidade do professor[editar]
Historicamente, a escola tem sido um dos principais agentes na disseminação do preconceito linguístico, ao eleger a norma-padrão como a única variedade legítima e ao tratar as variedades dos alunos como "erros" a serem eliminados. Essa abordagem, além de ineficaz, gera sentimentos de vergonha, exclusão e baixa autoestima linguística nos estudantes.
A responsabilidade do professor de português é, portanto, fundamental para mudar esse cenário. Cabe ao educador:
- Desfazer a confusão entre língua e gramática normativa: Ensinar que a gramática normativa é um código específico para certas práticas sociais, e não a língua em sua totalidade.
- Valorizar a variedade linguística do aluno: Reconhecer o conhecimento linguístico que o estudante traz de casa como um ponto de partida para a aprendizagem.
- Ensinar a norma-padrão como uma variedade a mais: Apresentar a norma-padrão não como superior, mas como a variedade adequada para determinados contextos (formais, escritos, acadêmicos, profissionais), ampliando o repertório linguístico do aluno.
- Promover a reflexão crítica: Discutir abertamente o preconceito linguístico em sala de aula, analisando casos e mostrando como ele é um instrumento de exclusão social.
O objetivo pedagógico não deve ser o de "corrigir" a fala do aluno, mas o de torná-lo um usuário competente e consciente da língua, capaz de transitar entre as diferentes variedades e de adequar sua linguagem às diversas situações comunicativas, sem que para isso precise negar sua identidade cultural e linguística.
O preconceito contra a Linguística e os linguistas[editar]
A Sociolinguística, ao descrever a língua como ela é e ao defender a legitimidade de todas as variedades, frequentemente entra em conflito com a visão purista e prescritivista da "norma curta". Isso gera um preconceito contra a própria ciência linguística e seus pesquisadores. Linguistas são frequentemente acusados de "defender o erro", de "quererem destruir o português" ou de promoverem um "liberou geral" no ensino.
Considerações Finais[editar]
O preconceito linguístico no Brasil não é meramente uma questão acadêmica ou cultural, mas um problema estrutural que perpassa todas as esferas da vida social. Sua superação exige transformações profundas e coordenadas em múltiplas frentes: legal, educacional, midiática, econômica e cultural.
As evidências apresentadas demonstram que a discriminação linguística produz efeitos mensuráveis e devastadores na vida de milhões de brasileiros, limitando oportunidades educacionais, profissionais e de participação social. Mais grave, essa discriminação se articula com outras formas de preconceito - racial, regional, de classe - criando barreiras interseccionais à plena cidadania.
O combate efetivo ao preconceito linguístico requer o reconhecimento de que todas as variedades do português brasileiro são sistemas linguísticos legítimos, funcionais e expressivos. A diversidade linguística nacional não é um obstáculo ao desenvolvimento, mas uma riqueza cultural a ser preservada e celebrada.
As experiências internacionais mostram que é possível construir sociedades linguisticamente inclusivas através de políticas públicas adequadas, vontade política e mobilização social. O Brasil tem todas as condições para se tornar referência mundial no combate à discriminação linguística, transformando sua extraordinária diversidade linguística em fonte de orgulho nacional e instrumento de justiça social.
A tarefa é urgente e complexa, mas absolutamente necessária. Como afirmou o linguista Marcos Bagno: "Combater o preconceito linguístico é combater o próprio preconceito social". Construir um Brasil verdadeiramente democrático passa, necessariamente, por respeitar e valorizar todas as formas de falar brasileiro.
Ver também[editar]
Referências[editar]
- ↑ OLIVEIRA, Gilvan Müller de. "Plurilinguismo no Brasil: repressão e resistência". Revista da ABRALIN, vol. 10, no. 2, 2011, pp. 11-40.
- ↑ SEYFERTH, Giralda. "A nacionalização das escolas dos descendentes de alemães no Brasil: da campanha à repressão". Educação & Sociedade, vol. 22, no. 76, 2001, pp. 65-87.
- ↑ FALCÃO, Eliane. A Era Vargas e a repressão aos estrangeiros. Editora da UFF, 2005.
- ↑ HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. Edusp, 2005.
- ↑ RAMBO, Arthur Blásio. A nacionalização do imigrante: a questão alemã no Brasil. Editora Unisinos, 1999.
- ↑ WILLE, J. L. Pomeranos no Espírito Santo: história, cultura e identidade. Editora da UFES, 2011.
- ↑ TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-1945). Editora Perspectiva, 2001.
- ↑ GERTZ, René E. O Estado Novo no Rio Grande do Sul. Editora da UFRGS, 2005.
Bibliografia[editar]
- BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 56. ed. São Paulo: Loyola, 2015.
- BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 17. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
- BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96). Brasília: MEC, 1996.
- BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
- BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
- CEARÁ. Lei nº 16.045, de 10 de novembro de 2016. Dispõe sobre o combate ao preconceito linguístico no Estado do Ceará.
- FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
- LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
- LUCCHESI, Dante. A diferenciação da língua portuguesa no Brasil e o contato entre línguas. Salvador: EDUFBA, 2015.
- NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira. Origens do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
- POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 9. ed. Campinas: Mercado de Letras, 2011.
- TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.
- VOTRE, Sebastião; CEZARIO, Maria Maura. Sociolinguística. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (Org.). Manual de linguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011.