Mudança linguística: mudanças entre as edições

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Expressões como "por causa de", "apesar de" e "além de" exemplificam lexicalização de construções preposicionais. Originalmente, eram sequências transparentes (preposição + substantivo + preposição), mas se lexicalizaram como locuções prepositivas unitárias com significados específicos. "Por causa de" não mais se relaciona com "causa" como substantivo independente - é uma unidade lexical indivisível que expressa relação causal.
Expressões como "por causa de", "apesar de" e "além de" exemplificam lexicalização de construções preposicionais. Originalmente, eram sequências transparentes (preposição + substantivo + preposição), mas se lexicalizaram como locuções prepositivas unitárias com significados específicos. "Por causa de" não mais se relaciona com "causa" como substantivo independente - é uma unidade lexical indivisível que expressa relação causal.


Formas verbais também podem se lexicalizar: "pese" em "pese embora" (apesar de) já não se relaciona com o verbo "pesar"; "malgrado" (apesar de) incorporou a preposição "grado" já obsoleta. Em "quer dizer" (significar/isto é), temos lexicalização de uma construção verbal que perdeu sua composicionalidade original.
Formas verbais também podem se lexicalizar: '''pese''' em "em que pese" (apesar de) já não se relaciona com o verbo "pesar"; "malgrado" (apesar de) incorporou a preposição "grado" já obsoleta. Em "quer dizer" (significar/isto é), temos lexicalização de uma construção verbal que perdeu sua composicionalidade original.


A lexicalização de diminutivos representa outro padrão interessante: "portão" (não é porta pequena), "cartão" (não é carta pequena), "botão" (perdeu relação semântica com "boto") mostram como sufixos podem se integrar ao radical formando novas unidades lexicais.
A lexicalização de diminutivos representa outro padrão interessante: "portão" (não é porta grande), "cartão" (não é carta grande), "botão" (perdeu relação semântica com "boto") mostram como sufixos podem se integrar ao radical formando novas unidades lexicais.


Gramaticalização e lexicalização demonstram a dinamicidade do sistema linguístico, onde limites entre categorias lexicais e gramaticais são fluidos e sujeitos à mudança histórica constante.
Gramaticalização e lexicalização demonstram a dinamicidade do sistema linguístico, onde limites entre categorias lexicais e gramaticais são fluidos e sujeitos à mudança histórica constante.

Edição das 13h43min de 31 de agosto de 2025

Longe de ser um sistema estático e imutável, a língua pulsa no ritmo da sociedade que a utiliza. A Sociolinguística, campo de estudos que se dedica à relação entre língua e sociedade, oferece ferramentas cruciais para entender por que e como essas transformações ocorrem. Este texto busca apresentar o conceito de mudança linguística, as metodologias para seu estudo e exemplos marcantes no português brasileiro contemporâneo, além de discutir a relevância desse conhecimento para a formação de futuros professores.

O que é mudança linguística?

Do ponto de vista sociolinguístico, a mudança linguística é um processo gradual de alteração em qualquer nível do sistema linguístico – seja na pronúncia (fonética e fonologia), na escolha das palavras (léxico), na sua formação (morfologia) ou na organização das frases (sintaxe). Essa transformação não é aleatória nem um sinal de "decadência" da língua, como o senso comum muitas vezes propaga. Pelo contrário, é um fenômeno natural e sistemático, impulsionado por uma complexa rede de fatores sociais, cognitivos e históricos.

A mudança linguística quase sempre se origina na variação. Em qualquer comunidade de fala, existem diferentes maneiras de dizer a mesma coisa. Por exemplo, podemos nos referir à primeira pessoa do plural como "nós" ou "a gente". Ambas as formas coexistem e são usadas em diferentes contextos e por diferentes grupos de falantes. Quando uma dessas variantes começa a se espalhar e a ser preferida pela maioria, a ponto de, eventualmente, substituir a outra por completo, temos um processo de mudança em curso. A variação, portanto, é a matéria-prima da mudança.

Como observar a mudança: tempo real e tempo aparente

Para capturar um processo que pode levar décadas ou séculos, os sociolinguistas desenvolveram duas metodologias principais: o estudo em tempo real e em tempo aparente.

  • Tempo Real: Este método consiste em comparar dados de uma mesma comunidade de fala em dois ou mais momentos distintos, com um intervalo de tempo significativo entre as coletas. Por exemplo, um pesquisador poderia analisar a frequência do uso do pronome "tu" no Rio de Janeiro em 1980 e repetir a mesma pesquisa em 2020. Se o uso tiver diminuído drasticamente, ele terá uma evidência forte de uma mudança em tempo real. Este método é o mais preciso, mas também o mais demorado e custoso.
  • Tempo Aparente: De forma mais prática, a hipótese do tempo aparente permite ao pesquisador inferir uma mudança a partir de uma única coleta de dados. A lógica é que, se os padrões de fala das gerações mais velhas diferem sistematicamente dos padrões das gerações mais novas, é provável que essa diferença reflita uma mudança em andamento. Ou seja, a forma como os jovens falam hoje tende a ser a forma predominante no futuro. Ao comparar a fala de avós, pais e netos de uma mesma comunidade, podemos ter um "retrato" da direção da mudança. Por exemplo, se os falantes mais jovens usam majoritariamente "a gente" e os mais velhos ainda preferem "nós", estamos diante de uma evidência de mudança em tempo aparente.

Os princípios e condicionamentos da mudança linguística

A mudança linguística não ocorre de forma arbitrária. William Labov, pioneiro da Sociolinguística Variacionista, estabeleceu princípios fundamentais que regem esses processos. O Princípio Uniformitário propõe que os mecanismos que produziram mudanças no passado são os mesmos que operam no presente, permitindo-nos compreender processos históricos através da observação de variações contemporâneas.

As mudanças são condicionadas por fatores linguísticos e extralinguísticos. Entre os linguísticos, destacam-se o contexto fonológico (sons adjacentes que podem facilitar ou inibir certas mudanças), a frequência de uso (palavras mais comuns tendem a mudar mais rapidamente) e a analogia (tendência de regularizar formas irregulares). Os fatores extralinguísticos incluem idade, sexo, classe social, escolaridade, região geográfica e situação comunicativa.

A difusão lexical é outro mecanismo importante: as mudanças não afetam todas as palavras simultaneamente, mas se espalham gradualmente pelo léxico, seguindo padrões específicos de frequência e características fonológicas. Por exemplo, a monotongação do ditongo [ow] → [o] no português brasileiro ocorreu primeiro em palavras de alta frequência como "ouro" → "oro" e "louro" → "loro", enquanto em palavras menos frequentes, como "mouro" ou "agouro", a forma ditongada ainda resiste em muitas variedades regionais.

Mudanças em curso no português brasileiro

O português falado no Brasil é um terreno fértil para a observação de mudanças linguísticas. Abaixo, destacamos alguns exemplos amplamente estudados pela Sociolinguística:

1. O futuro do presente

A forma sintética do futuro do presente, como em "eu cantarei" ou "nós faremos", embora ainda presente na escrita formal, cedeu espaço massivamente na língua falada (e cada vez mais na escrita) para a forma perifrástica com o verbo ir, como em "eu vou cantar" ou "nós vamos fazer". Estudos em tempo aparente mostram que as gerações mais novas utilizam a forma perifrástica de maneira quase categórica, indicando que a forma sintética se tornou um marcador de formalidade e, em muitos contextos, soa artificial.

2. A ascensão do "a gente"

O pronome "nós" vem perdendo terreno para a locução pronominal "a gente". A principal diferença sintática é que "nós" exige a concordância verbal na primeira pessoa do plural ("nós fomos"), enquanto "a gente", por sua estrutura, leva o verbo para a terceira pessoa do singular ("a gente foi"). Essa mudança simplifica a flexão verbal e tem avançado progressivamente em todas as faixas etárias e classes sociais na oralidade, sendo um dos casos mais evidentes de mudança em curso no sistema pronominal.

3. A variação na concordância verbal

Especialmente com sujeitos na terceira pessoa do plural, a marca de plural no verbo tem se mostrado variável no português brasileiro falado. Frases como "Os menino chegou" em vez de "Os meninos chegaram" são comuns em variedades populares. A Sociolinguística não encara esse fenômeno como um "erro", mas como um sistema em que a concordância é marcada primariamente no primeiro elemento do sintagma nominal, tornando a marca no verbo redundante. Embora estigmatizada, essa variação demonstra a complexidade da gramática em uso e as pressões internas do sistema linguístico.

4. Mudanças fonético-fonológicas

O português brasileiro apresenta diversas inovações sonoras em relação ao português europeu. A palatalização de [t] e [d] diante de [i] átono ("noite" /ˈnojtʃi/, "dia" /ˈdʒia/) é um dos processos mais estudados, ocorrendo com maior intensidade no sudeste e centro-oeste. A monotongação de ditongos como [ej] → [e] ("p[ej]xe" → "p[e]xe") e [ow] → [o] ("[ow]ro" → "[o]ro") representa outro fenômeno em expansão.

A neutralização das vogais médias pretônicas também merece atenção: palavras como "pepino" e "menino" podem ter suas vogais iniciais realizadas de forma idêntica ("p[i]pino" e "m[i]nino") em muitas variedades do português brasileiro, contrastando com o padrão lusitano que mantém a distinção.

5. Inovações morfossintáticas

O objeto nulo (omissão do pronome objeto) tem se generalizado no português brasileiro: "Você viu o João? Vi Ø ontem" (em vez de "Vi-o ontem"). Paralelamente, quando o pronome é realizado, prefere-se a forma reta em posição de objeto: "Vi ele" (em vez de "Vi-o"), configurando uma reorganização completa do sistema pronominal.

A concordância nominal também apresenta variação sistemática, especialmente em sintagmas com múltiplos elementos: "As menina bonita" em vez de "As meninas bonitas", seguindo um padrão em que a marca de plural tende a se concentrar no determinante.

Tipos de mudança linguística

Os linguistas classificam as mudanças em diferentes tipos, cada um com características específicas:

Mudança por contato

Quando línguas entram em contato, podem ocorrer empréstimos lexicais, calcos semânticos e até mudanças estruturais:

  • Empréstimos lexicais consistem na incorporação direta de palavras de uma língua para outra, geralmente adaptadas ao sistema fonológico da língua receptora. No português brasileiro, encontramos empréstimos de diferentes origens: palavras como "abacaxi", "mandioca" e "caipira" têm origem indígena; "moleque", "quitanda" e "samba" derivam de línguas africanas; mais recentemente, anglicismos como "deletar", "printar", "mouse" e "startup" foram incorporados ao léxico, especialmente na área tecnológica.
  • Calcos semânticos ocorrem quando uma palavra já existente na língua receptora ganha novo significado por influência de outra língua, mantendo sua forma original. Por exemplo, no português brasileiro, o verbo "realizar" desenvolveu o sentido de "perceber/dar-se conta" (como em "Ele não realizou que estava atrasado") por influência do inglês "realize", além de manter seu sentido tradicional de "executar/concretizar". Similarmente, "assumir" ganhou o significado de "supor/presumir" por influência do inglês "assume", e "pretender" passou a significar "fingir" em alguns contextos, calcado no inglês "pretend".
  • Mudanças estruturais envolvem alterações nos padrões sintáticos, morfológicos ou fonológicos da língua receptora. No português brasileiro contemporâneo, observamos a crescente influência de estruturas sintáticas do inglês, especialmente em contextos digitais e midiáticos. Construções como "não é sobre falar" (calcada no inglês "it's not about talking"), "isso é sobre você" (do inglês "this is about you") ou "focado em fazer" (do inglês "focused on doing") representam padrões sintáticos que se distanciam das estruturas tradicionais do português, que preferiria "não se trata de falar", "isso diz respeito a você" ou "concentrado em fazer".

Mudança interna e mudança externa

As mudanças linguísticas são classificadas em interna ou externa a depender dos fatores condicionadores

  • Mudanças internas resultam das pressões do próprio sistema linguístico, sem influência externa significativa. Essas mudanças são motivadas por princípios como economia articulatória, regularização analógica, reanálise estrutural e tendências universais de simplificação. A substituição do futuro sintético ("cantarei") pelo perifrástico ("vou cantar") exemplifica uma mudança interna: o futuro sintético exige memorização de formas específicas para cada verbo, enquanto o perifrástico segue um padrão regular (verbo "ir" + infinitivo) que reduz o esforço cognitivo. Outro exemplo é a regularização de verbos irregulares pelas crianças em fase de aquisição: formas como "eu sabo" (em vez de "eu sei") mostram a pressão interna do sistema para criar padrões regulares. A síncope de vogais átonas em proparoxítonas ("estômago" → "estomo") também representa uma mudança interna motivada pela tendência do português a evitar o padrão proparoxítono, considerado "marcado" no sistema.
  • Mudanças externas são impulsionadas por fatores sociais, culturais, políticos ou pelo contato com outras línguas. Essas mudanças refletem prestígio social, identidade grupal, mudanças na estrutura social ou influência de outras variedades linguísticas. A adoção massiva de anglicismos no português brasileiro contemporâneo ("deletar", "printar", "startup", "feedback") ilustra mudanças motivadas externamente pelo prestígio cultural e tecnológico associado ao inglês. O uso crescente de "você" em detrimento de "tu" em muitas regiões do Brasil também exemplifica mudança externa: historicamente, "você" (forma de tratamento respeitoso derivada de "Vossa Mercê") expandiu-se por questões de cortesia social e uniformização dialetal promovida pelos meios de comunicação. Mudanças na linguagem de gênero, como tentativas de neutralização com "@", "x" ou "e" ("amigxs", "todes"), representam mudanças externas motivadas por movimentos sociais e mudanças na consciência sobre identidade de gênero.

Gramaticalização e lexicalização

Gramaticalização e lexicalização são processos opostos mas complementares que mostram como elementos linguísticos podem mudar de categoria e função ao longo do tempo:

Gramaticalização é o processo pelo qual elementos lexicais (palavras com significado pleno) se transformam gradualmente em elementos gramaticais (palavras funcionais), perdendo conteúdo semântico e ganhando função estrutural. Este processo segue estágios previsíveis: item lexical → item gramatical → clítico → afixo → zero.

O caso de "a gente" ilustra perfeitamente esse processo. Originalmente, "gente" significava "pessoas/povo" (item lexical pleno: "havia muita gente na festa"). Com o tempo, a construção "a gente" passou por reanálise semântica, perdendo o sentido de "pessoas" para adquirir função pronominal equivalente a "nós". Atualmente, "a gente" funciona como pronome pessoal gramaticalizado: não admite modificadores ("a gente bonita vai"), não pode ser pluralizada ("as gentes vão") e seu referente é sempre a primeira pessoa do plural. O processo ainda não se completou totalmente, pois ainda mantém concordância de terceira pessoa ("a gente vai" e não "a gente vamos").

O verbo "ir" no futuro perifrástico também passou por gramaticalização. De verbo pleno indicando movimento físico ("vou ao mercado"), desenvolveu função de auxiliar temporal ("vou comprar pão"), perdendo o traço semântico de deslocamento. Em contextos como "vou gostar deste filme" (referindo-se a filme que já começou), o verbo "ir" não denota movimento algum, apenas tempo futuro.

Outros exemplos incluem: "acabar de" (de verbo + preposição para marcador de aspecto terminativo), "ter que" (de verbo + preposição para marcador de modalidade deôntica), e "deixar" (de verbo pleno para auxiliar causativo em "deixa eu fazer").

A lexicalização percorre o caminho inverso: elementos ou construções gramaticais se cristalizam em unidades lexicais, geralmente perdendo sua transparência morfológica e ganhando significado específico não-composicional.

Expressões como "por causa de", "apesar de" e "além de" exemplificam lexicalização de construções preposicionais. Originalmente, eram sequências transparentes (preposição + substantivo + preposição), mas se lexicalizaram como locuções prepositivas unitárias com significados específicos. "Por causa de" não mais se relaciona com "causa" como substantivo independente - é uma unidade lexical indivisível que expressa relação causal.

Formas verbais também podem se lexicalizar: pese em "em que pese" (apesar de) já não se relaciona com o verbo "pesar"; "malgrado" (apesar de) incorporou a preposição "grado" já obsoleta. Em "quer dizer" (significar/isto é), temos lexicalização de uma construção verbal que perdeu sua composicionalidade original.

A lexicalização de diminutivos representa outro padrão interessante: "portão" (não é porta grande), "cartão" (não é carta grande), "botão" (perdeu relação semântica com "boto") mostram como sufixos podem se integrar ao radical formando novas unidades lexicais.

Gramaticalização e lexicalização demonstram a dinamicidade do sistema linguístico, onde limites entre categorias lexicais e gramaticais são fluidos e sujeitos à mudança histórica constante.

Variação diatópica e mudança

O português brasileiro não é uniforme em todo o território nacional. As diferenças regionais oferecem laboratórios naturais para o estudo da mudança. O rotacismo (troca de /l/ por /r/ em grupos consonantais: "pranta" por "planta") é mais comum no interior de algumas regiões. O uso de "tu" versus "você" varia drasticamente entre regiões: no Rio Grande do Sul, "tu" ainda é produtivo, enquanto no sudeste praticamente desapareceu.

Essas variações diatópicas são fundamentais para compreender como as mudanças se propagam geograficamente e como diferentes variedades podem seguir trajetórias evolutivas distintas.

Atitudes linguísticas e mudança

As atitudes linguísticas – julgamentos que os falantes fazem sobre diferentes variedades – influenciam profundamente os processos de mudança. Variantes associadas ao prestígio social tendem a se expandir, enquanto as estigmatizadas podem retroceder ou se manter restritas a grupos específicos.

No português brasileiro, formas como "nós vai" são altamente estigmatizadas e raramente se expandem além de variedades populares, enquanto "a gente vai" conseguiu neutralidade suficiente para se difundir por todas as classes sociais na oralidade.

Mudança e tecnologia

As novas tecnologias têm acelerado e direcionado mudanças linguísticas contemporâneas. A comunicação digital criou novos gêneros textuais (posts, tweets, mensagens instantâneas) que hibridizam características da fala e da escrita. Abreviações como "vc" (você), "tb" (também) e "pq" (porque) migraram dos contextos digitais para outros ambientes de escrita informal.

A convergência dialetal facilitada pela mídia e pelas redes sociais pode estar acelerando a uniformização de certas variantes, enquanto simultaneamente permite a manutenção de identidades regionais em nichos específicos.

A importância para a formação de professores

Para o futuro professor de Língua Portuguesa, o estudo da mudança linguística é mais do que uma curiosidade acadêmica; é uma necessidade pedagógica. Compreender esses processos permite:

  • Combater o preconceito linguístico: Ao entender que a língua muda e que as formas usadas pelos alunos (como "a gente vai" ou a ausência de certas concordâncias) são parte de processos sistemáticos e não "erros" aleatórios, o professor pode adotar uma postura menos prescritivista e mais acolhedora. Isso não significa abandonar o ensino da norma-padrão, mas sim contextualizá-la como uma das variedades da língua, adequada a situações formais específicas.
  • Desenvolver uma visão crítica sobre a gramática: O professor que conhece a mudança linguística percebe que a gramática normativa representa um retrato de um estado da língua, muitas vezes já defasado em relação ao uso real. Isso o capacita a ensinar a norma-padrão de forma mais eficaz, mostrando sua função social sem deslegitimar a língua que o aluno traz de casa.
  • Promover uma aprendizagem mais significativa: Partir da realidade linguística do aluno para chegar à norma-padrão é uma estratégia pedagógica muito mais eficiente. Ao discutir por que dizemos "vou fazer" em vez de "farei", o professor torna a aula de português mais dinâmica e conectada à vida dos estudantes, despertando a consciência sociolinguística deles.
  • Preparar para a diversidade: Em um país continental como o Brasil, o professor deve estar preparado para a diversidade linguística. Conhecer os processos de mudança ajuda a identificar padrões regionais e sociais, permitindo um trabalho pedagógico mais sensível às variedades trazidas pelos alunos.

Perspectivas futuras

O estudo da mudança linguística no português brasileiro está em constante evolução. Novas tecnologias permitem análises de grandes corpora, facilitando a identificação de tendências em tempo real. A sociolinguística computacional emerge como uma ferramenta poderosa para rastrear mudanças em redes sociais e plataformas digitais.

Questões contemporâneas como linguagem inclusiva (uso de "x", "@" ou "e" para marcar neutralidade de gênero) e a influência de movimentos sociais na linguagem representam novos desafios para os pesquisadores da mudança linguística.

Considerações finais

A mudança linguística é a prova irrefutável da vitalidade de uma língua. Para os graduandos em Letras, estudá-la é abrir os olhos para a fascinante interação entre estrutura linguística e estrutura social, preparando-se para atuar como mediadores conscientes e críticos entre a riqueza da língua em uso e as convenções da norma-padrão. Compreender que a língua é um sistema dinâmico, moldado pela criatividade e pelas necessidades comunicativas de seus falantes, é fundamental para uma prática pedagógica transformadora e inclusiva.

O futuro professor de português deve ser, antes de tudo, um conhecedor da complexidade linguística brasileira, capaz de celebrar essa diversidade enquanto oferece aos estudantes as ferramentas necessárias para navegar com competência por diferentes situações comunicativas. A mudança linguística, longe de ser uma ameaça à "pureza" da língua, é a garantia de sua continuidade e relevância social.

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