Letramento: mudanças entre as edições
| Linha 17: | Linha 17: | ||
= A origem e o deslocamento do foco = | = A origem e o deslocamento do foco = | ||
O letramento, portanto, articula pelo menos quatro dimensões fundamentais: a cognitiva, relacionada às competências linguísticas e interpretativas; a social, vinculada às práticas coletivas de uso da escrita; a ideológica, que remete às relações de poder, valores e legitimidades; e a histórica, que evidencia a transformação constante das práticas discursivas. Entendê-lo implica reconhecer que as formas de legitimar certos gêneros e excluir outros refletem desigualdades estruturais. Quando a escola privilegia apenas determinadas variedades linguísticas ou gêneros formais, por exemplo, reforça distinções de classe, etnia ou gênero, marginalizando práticas letradas populares e comunitárias. | |||
Em síntese, o letramento não pode ser reduzido à alfabetização, embora a inclua. Trata-se de um processo complexo de apropriação social da escrita, em que se conjugam competências individuais, práticas coletivas, contextos históricos e disputas ideológicas. Essa concepção amplia o horizonte da educação, deslocando a ênfase da mera decodificação para a participação crítica em culturas letradas diversas. | |||
== O paradigma da alfabetização tradicional == | == O paradigma da alfabetização tradicional == | ||
Edição das 01h25min de 17 de setembro de 2025
O conceito de letramento ocupa posição central nos estudos da linguagem e da educação, distinguindo-se, embora não se desvincule, da noção de alfabetização. Enquanto a alfabetização se refere principalmente à aquisição do sistema de escrita alfabética e à capacidade técnica de decodificação e codificação, o letramento diz respeito à apropriação social da leitura e da escrita, em suas múltiplas funções, práticas e significados.
Origem do conceito
O conceito de letramento emergiu nos anos 1980 como resposta a uma crescente percepção de que a alfabetização tradicional - vista como mera decodificação mecânica - era insuficiente para preparar os indivíduos para as demandas sociais da leitura e escrita.
No Brasil dos anos 1980, observou-se um paradoxo: as taxas de alfabetização aumentavam, mas persistiam dificuldades relacionadas à compreensão de textos complexos, uso da escrita em contextos formais e participação crítica na sociedade letrada. Era como se as pessoas soubessem "as regras do jogo", mas não soubessem "jogar".
Essa perspectiva já aparece em Paulo Freire (1989), ao insistir que alfabetizar não pode ser compreendido como um ato meramente mecânico, mas como prática de leitura de mundo. Para Freire, o acesso à palavra escrita deve estar vinculado ao exercício da cidadania e à possibilidade de intervenção crítica na realidade. Nesse sentido, sua pedagogia antecipa a concepção de letramento como processo social, cultural e político, e não apenas como aquisição técnica.
Nos anos 1980, os estudos de Brian Street consolidaram essa inflexão teórica. Street (1984) propôs a distinção entre o modelo autônomo e o modelo ideológico do letramento. O primeiro, dominante em muitas abordagens educacionais, entende a escrita como um conjunto de habilidades cognitivas universais, cujo domínio garantiria avanços sociais e econômicos. O segundo, em contraste, parte da ideia de que o letramento é sempre situado e permeado por ideologias, de modo que não se pode dissociar a prática da escrita de seus contextos socioculturais. Como sintetiza o autor, “não existe letramento em si, mas práticas de letramento, moldadas pelas estruturas de poder e pelos sistemas de significado” (Street, 1984, p. 8).
No contexto brasileiro, Magda Soares foi responsável por difundir amplamente o conceito, destacando que o letramento é condição para o exercício pleno da cidadania e para a democratização da sociedade (Soares, 2003). Como observa a autora (Soares, 1998, p. 18), “não basta apenas saber ler e escrever; é preciso viver as práticas sociais da leitura e da escrita, é preciso participar de eventos de letramento”. Essa reflexão articulou-se a outros estudos nacionais, como os de Mary Kato (1986), Angela Kleiman (1995) e Roxane Rojo (2009), que analisaram tanto o papel da escola quanto a emergência dos letramentos digitais.
A partir dessa contribuição, a pesquisa em letramento deslocou-se para uma perspectiva etnográfica e crítica, atenta às práticas concretas de leitura e escrita em comunidades específicas. Barton e Hamilton (1998), por exemplo, concebem o letramento como conjunto de “eventos” e “práticas”, em que os textos circulam e adquirem sentido em interação com as instituições e os sujeitos. Angela Kleiman (1995) enfatiza que as práticas letradas são constitutivas da vida social e não podem ser compreendidas apenas como competências individuais. Assim, torna-se necessário reconhecer a existência de múltiplos letramentos: escolares, profissionais, comunitários, digitais, midiáticos, entre outros.
Essa pluralidade indica que o letramento não é estático nem uniforme, mas dinâmico e historicamente situado. A invenção da imprensa, a expansão da escolarização, a cultura de massas e, mais recentemente, as tecnologias digitais alteraram profundamente as formas de ler e escrever. O conceito de multiletramentos amplia esse horizonte, ao reconhecer que as práticas de letramento contemporâneas envolvem múltiplas linguagens, semioses e suportes, o que exige competências híbridas e flexíveis.
A origem e o deslocamento do foco
O letramento, portanto, articula pelo menos quatro dimensões fundamentais: a cognitiva, relacionada às competências linguísticas e interpretativas; a social, vinculada às práticas coletivas de uso da escrita; a ideológica, que remete às relações de poder, valores e legitimidades; e a histórica, que evidencia a transformação constante das práticas discursivas. Entendê-lo implica reconhecer que as formas de legitimar certos gêneros e excluir outros refletem desigualdades estruturais. Quando a escola privilegia apenas determinadas variedades linguísticas ou gêneros formais, por exemplo, reforça distinções de classe, etnia ou gênero, marginalizando práticas letradas populares e comunitárias.
Em síntese, o letramento não pode ser reduzido à alfabetização, embora a inclua. Trata-se de um processo complexo de apropriação social da escrita, em que se conjugam competências individuais, práticas coletivas, contextos históricos e disputas ideológicas. Essa concepção amplia o horizonte da educação, deslocando a ênfase da mera decodificação para a participação crítica em culturas letradas diversas.
O paradigma da alfabetização tradicional
O modelo tradicional de alfabetização caracterizava-se por:
- Foco na correspondência grafema-fonema
- Ensino descontextualizado
- Ênfase na correção ortográfica
- Visão da escrita como código neutro
- Metodologias baseadas em cartilhas e exercícios mecânicos
A emergência do conceito de letramento
Magda Soares (1998) definiu letramento como "o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, bem como o resultado da ação de usar essas habilidades em práticas sociais". Esta definição revolucionou o campo ao:
- Pluralizar o conceito: Não existe UM letramento, mas múltiplos letramentos
- Contextualizar as práticas: A leitura/escrita só fazem sentido em situações reais
- Politizar o processo: Reconhecer que dominar a escrita é uma questão de poder social
Os modelos de Brian Street
Modelo autônomo
- Trata o letramento como habilidade técnica neutra
- Assume efeitos cognitivos universais
- Desconsidera contextos culturais e sociais
- Crítica: Mascara as relações de poder inerentes às práticas letradas
Modelo ideológico
- Reconhece o letramento como prática social situada
- Considera as relações de poder e ideologia
- Valoriza os diferentes letramentos locais
- Vantagem: Oferece uma visão mais democrática e inclusiva
Exemplos Comparativos
Situação 1 - Leitura de bula de remédio:
- Alfabetização: Decodificar "tomar 2 comprimidos a cada 8 horas"
- Letramento: Compreender que isso significa 3 vezes ao dia, calcular os horários adequados, entender as contraindicações, saber quando procurar orientação médica
Situação 2 - Redes sociais:
- Alfabetização: Ler e escrever comentários
- Letramento digital: Identificar fake news, compreender algoritmos, usar adequadamente diferentes linguagens (memes, hashtags), entender questões de privacidade
Situação 3 - Ambiente acadêmico:
- Alfabetização: Ler textos teóricos
- Letramento acadêmico: Citar adequadamente, construir argumentos baseados em evidências, dominar gêneros como resenha, artigo, dissertação
Letramento e discurso
A contribuição bakhtiniana
Mikhail Bakhtin revolucionou nossa compreensão da linguagem ao propor que toda comunicação se organiza em gêneros do discurso - "tipos relativamente estáveis de enunciados". Para Bakhtin, dominar um gênero significa compreender:
- Conteúdo temático: O que pode/deve ser dito
- Estrutura composicional: Como organizar o texto
- Estilo: Que linguagem usar
Implicações para o letramento: Ser letrado significa dominar os gêneros relevantes para sua participação social. Cada esfera de atividade (escola, trabalho, família, lazer) possui seus gêneros específicos.
Exemplos de gêneros e práticas de letramento
Letramento profissional - e-mail corporativo =
- Estrutura: Assunto claro, saudação formal, corpo objetivo, despedida adequada
- Linguagem: Formal, direta, respeitosa
- Contexto social: Hierarquias, prazos, protocolos institucionais
| Inadequado | Adequado |
|---|---|
| "Oi, preciso falar com você" | "Assunto: Solicitação de reunião - Projeto X Prezado Sr. Silva, solicito agendar reunião..." |
Letramento acadêmico - resenha crítica
- Estrutura: Apresentação da obra, resumo, análise crítica, avaliação
- Linguagem: Formal acadêmica, terminologia específica, impessoalidade
- Contexto social: Comunidade científica, avaliação por pares
| Inadequado | Adequado |
|---|---|
| "O livro é muito bom e interessante" | "A obra apresenta contribuições significativas ao campo teórico, especialmente na articulação entre os conceitos de..." |
Letramento digital - Post em rede social
- Estrutura: Gancho inicial, desenvolvimento breve, call-to-action
- Linguagem: Informal, emotiva, uso de hashtags e emojis
- Contexto social: Engajamento, viralização, construção de persona
O discurso segundo Foucault =
Michel Foucault amplia nossa compreensão ao mostrar que o discurso não é apenas linguagem, mas um conjunto de práticas que constroem conhecimento e poder. Para Foucault, os discursos:
- Determinam o que pode ser dito em determinado contexto
- Estabelecem quem tem autoridade para falar
- Criam objetos de conhecimento e formas de subjetivação
Letramento como prática discursiva: Dominar um letramento específico significa participar de uma formação discursiva, ou seja, compartilhar regras implícitas sobre o que é válido, verdadeiro e legítimo naquele contexto.
Exemplo: o discurso médico
Características do letramento médico:
- Vocabulário técnico: Uso preciso de terminologia científica
- Estrutura argumentativa: Baseada em evidências empíricas
- Autoridade epistêmica: Legitimada pela formação e instituição
- Relações de poder: Define quem pode "diagnosticar" e "prescrever"
Implicação social: Quando um paciente não domina esse letramento, fica em posição de subordinação, aceitando passivamente as orientações sem compreender plenamente sua condição.
Críticas e limitações do conceito de Letramento
Críticas teóricas
Risco de "pedagogização" excessiva
Crítica de Collins e Blot (2003): O conceito pode ser usado para responsabilizar indivíduos por "deficiências" que são, na verdade, questões estruturais.
Exemplo: Culpar trabalhadores por não conseguirem empregos por "falta de letramento", ignorando questões como desemprego estrutural e precarização.
Idealização do letramento dominante
Crítica: Tendência a valorizar apenas os letramentos das classes dominantes.
Exemplo: Desvalorizar o letramento de comunidades periféricas (como o rap, cordel, literatura marginal) em favor do letramento escolar tradicional.
Multiplicação excessiva de "letramentos"
Crítica de Britto (2003): A proliferação de termos (letramento digital, científico, matemático, etc.) pode esvaziar o conceito.
Risco: Perder o foco nas questões fundamentais de acesso à cultura escrita.
Determinismo tecnológico
Crítica: Associar automaticamente novas tecnologias a novos letramentos sem considerar continuidades.
Exemplo: Assumir que usar redes sociais automaticamente desenvolve "letramento digital crítico".
Críticas políticas e sociais
Despolitização das desigualdades
Problema: Focar apenas nas habilidades individuais, ignorando estruturas de classe, raça e gênero.
Exemplo: Programas de "inclusão digital" que oferecem acesso à tecnologia mas não questionam por que esse acesso era restrito.
Colonialismo epistêmico
Crítica: Impor modelos de letramento ocidentais/urbanos sobre comunidades tradicionais.
Exemplo: Exigir letramento escolar de povos indígenas sem valorizar suas tradições orais.
Limitações metodológicas
Dificuldade de mensuração
Problema: Como medir algo tão complexo e contextual quanto o letramento?
Exemplo: Testes padronizados podem não capturar letramentos locais relevantes.
Relativismo vs. padrões
Tensão: Como equilibrar o respeito à diversidade de letramentos com a necessidade de critérios educacionais?
Implicações para a educação e a formação docente
Repensando o papel da escola
A escola deixa de ser local de transmissão de conhecimentos "neutros" para se tornar espaço de mediação entre diferentes letramentos.
Princípios norteadores:
- Diversidade: Reconhecer e valorizar os letramentos que os alunos trazem
- Criticidade: Desenvolver leitura crítica dos textos e contextos
- Funcionalidade: Conectar as práticas escolares com práticas sociais reais
- Democratização: Garantir acesso aos letramentos de prestígio social
Estratégias pedagógicas
Projetos de letramento (Kleiman)
Princípio: Partir de problemas reais da comunidade.
Exemplo: Investigar a qualidade da água do bairro → produzir relatório → apresentar para autoridades locais.
Gêneros envolvidos: Questionário, relatório científico, carta formal, apresentação oral.
Sequências didáticas com gêneros (Dolz e Schneuwly)
Estrutura: Apresentação da situação → primeira produção → módulos de aprendizagem → produção final.
Exemplo prático:
- Situação: Criar um podcast sobre literatura brasileira
- Gêneros trabalhados: Roteiro, entrevista, resenha crítica
- Habilidades: Pesquisa, síntese, oralidade, edição de áudio
Letramentos críticos
Objetivo: Questionar as relações de poder presentes nos textos.
Exemplo: Analisar como diferentes jornais cobrem o mesmo evento.
Perguntas-chave: Quem fala? Para quem? Com que interesse? O que está silenciado?
Formação docente: novos desafios
Autoconhecimento dos próprios letramentos
O professor precisa refletir sobre suas próprias práticas letradas.
Questão reflexiva: "Que letramentos domino? Quais ainda preciso desenvolver?"
Competência intercultural
Capacidade de transitar entre diferentes letramentos sem hierarquizá-los.
Exemplo: Valorizar tanto a escrita formal quanto o slam poetry.
Atualização constante
Os letramentos são dinâmicos, especialmente os digitais.
Desafio: Acompanhar as transformações tecnológicas e sociais.
Exemplos de atividades
Atividade multiletramento - "Fake News"
Objetivo: Desenvolver letramento digital crítico.
Processo:
- Coletar notícias sobre o mesmo tema em diferentes fontes
- Identificar elementos textuais e extratextuais que indicam confiabilidade
- Criar um guia visual (infográfico) sobre como identificar fake news
- Compartilhar nas redes sociais da escola
Projeto "Memórias do Bairro"
Objetivo: Valorizar letramentos locais.
Processo:
- Entrevistar moradores antigos (letramento oral)
- Pesquisar documentos históricos (letramento acadêmico)
- Criar um documentário (letramento audiovisual)
- Organizar exposição na escola (letramento expositivo)
Avaliação em contextos de letramento
Mudança de paradigma: Da avaliação de "erros" para avaliação de adequação ao contexto.
Critérios avaliativos:
- Eficácia comunicativa: O texto cumpre seu propósito?
- Adequação ao gênero: Respeita as convenções esperadas?
- Criticidade: Demonstra reflexão sobre o contexto social?
- Criatividade: Inova dentro das possibilidades do gênero?
Considerações finais
O conceito de letramento, apesar de suas limitações e críticas, continua sendo fundamental para compreendermos os desafios educacionais contemporâneos. Ele nos convida a:
- Reconhecer a diversidade de formas de ler e escrever o mundo
- Questionar as hierarquias entre diferentes práticas letradas
- Conectar escola e vida social de forma mais orgânica e crítica
- Formar cidadãos críticos capazes de participar ativamente da sociedade
Em um mundo de transformações digitais aceleradas, mudanças nas formas de trabalho e crescente polarização social, que novos letramentos precisaremos desenvolver? E como garantir que esses desenvolvimentos sejam democráticos e inclusivos?
Bibliografia
Bibliografia essencial
- BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
- KLEIMAN, A. B. Preciso "ensinar" o letramento? Campinas: Cefiel/Unicamp, 2005.
- ROJO, R.; MOURA, E. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
- SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
- STREET, B. Literacy in Theory and Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
Para aprofundamento
- BARTON, David; HAMILTON, Mary. *Local Literacies: Reading and Writing in One Community*. London: Routledge, 1998.
- FREIRE, Paulo. *A importância do ato de ler: em três artigos que se completam*. 23. ed. São Paulo: Cortez, 1989.
- KATO, Mary. *No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística*. São Paulo: Ática, 1986.
- KLEIMAN, Angela. *Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola*. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
- ROJO, Roxane. *Letramentos múltiplos, escola e inclusão social*. São Paulo: Parábola, 2009.
- SOARES, Magda. *Letramento: um tema em três gêneros*. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
- SOARES, Magda. *Alfabetização e letramento*. São Paulo: Contexto, 2003.
- STREET, Brian. *Literacy in Theory and Practice*. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
- THE NEW LONDON GROUP. *A Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures*. *Harvard Educational Review*, v. 66, n. 1, p. 60-92, 1996.
- BRITTO, L. P. L. Contra o consenso: cultura escrita, educação e participação. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
- COLLINS, J.; BLOT, R. Literacy and Literacies. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
- FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.