Oralidade e escrita: mudanças entre as edições
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Nesse sentido, a contribuição do linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi, uma das principais referências no tema, é crucial. Em sua obra, ele propõe uma dupla distinção que serve como alicerce para uma nova compreensão da matéria: | Nesse sentido, a contribuição do linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi, uma das principais referências no tema, é crucial. Em sua obra, ele propõe uma dupla distinção que serve como alicerce para uma nova compreensão da matéria: | ||
*''' | *'''Oralidade e Letramento como Práticas Sociais:''' A primeira distinção foca no papel social das modalidades. A oralidade, como prática social, refere-se ao conjunto de atividades e interações mediadas pela fala no cotidiano. É a porta de nossa iniciação à racionalidade e um fator de identidade social, regional ou grupal. O letramento, por sua vez, é a prática social da escrita, englobando todos os usos e funções que a escrita tem na vida em sociedade. O letramento não se restringe à mera habilidade de decodificar letras, mas à capacidade de usar a escrita de forma adequada e contextualizada em diferentes eventos sociais. | ||
*''' | *'''Fala e Escrita como Modalidades de Uso:''' A segunda distinção aborda os aspectos técnicos e a materialização do código linguístico. A fala é a modalidade de uso articulada oralmente, enquanto a escrita é a modalidade de uso executada graficamente, utilizando um sistema de letras, sinais de pontuação e acentuação. Essa diferenciação técnica é importante, mas não pode ser o único critério de análise, pois ignora a influência mútua e as sobreposições que ocorrem no dia a dia. | ||
A superação da visão dicotômica se dá com a adoção do conceito de ''continuum'' oralidade-escrita. Em vez de categorias opostas, fala e escrita são vistas como os polos de uma mesma linha, ao longo da qual se distribuem os diversos gêneros textuais. Gêneros que se aproximam mais do polo da oralidade são aqueles com alto grau de interação, espontaneidade e pouca formalidade (ex.: uma conversa de bar). Já os gêneros que se situam no polo da escrita são caracterizados por um maior planejamento, menor interação e maior formalidade (ex.: um contrato jurídico). Contudo, a maioria dos textos do cotidiano não se encaixa de forma estrita em nenhum dos polos, mas sim em um ponto intermediário, como as cartas familiares ou as mensagens eletrônicas. A tabela a seguir ilustra a distribuição de alguns gêneros textuais ao longo desse ''continuum''. | A superação da visão dicotômica se dá com a adoção do conceito de ''continuum'' oralidade-escrita. Em vez de categorias opostas, fala e escrita são vistas como os polos de uma mesma linha, ao longo da qual se distribuem os diversos gêneros textuais. Gêneros que se aproximam mais do polo da oralidade são aqueles com alto grau de interação, espontaneidade e pouca formalidade (ex.: uma conversa de bar). Já os gêneros que se situam no polo da escrita são caracterizados por um maior planejamento, menor interação e maior formalidade (ex.: um contrato jurídico). Contudo, a maioria dos textos do cotidiano não se encaixa de forma estrita em nenhum dos polos, mas sim em um ponto intermediário, como as cartas familiares ou as mensagens eletrônicas. A tabela a seguir ilustra a distribuição de alguns gêneros textuais ao longo desse ''continuum''. | ||
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Edição das 12h55min de 22 de setembro de 2025
Oralidade e escrita são chamadas de modalidades da língua porque correspondem a dois modos básicos de materializar a linguagem: pela voz (fala/oralidade) e pelo traço gráfico (escrita). Essa distinção de suporte físico esteve tradicionalmente associada a outras distinções: modo de produção (espontâneo ou planejado), recursos expressivos (entonação, gestos, pontuação, layout) e condições de circulação (efêmera/imediata ou durável/permanente). Nesse sentido, a fala - caracterizada por interações face a face - envolveria marcas de espontaneidade, como pausas, hesitações, repetições, gestos e entonação, e estaria mais fortemente ligada ao contexto da situação comunicativa. A escrita, por outro lado, costumaria ser mais planejada, menos dependente do contexto imediato e mais sujeita à revisão e fixação, permitindo circulação e preservação no tempo e no espaço.
No entanto, a perspectiva sociolinguística vem problematizando essa visão dicotômica e simplista, que trata a fala e a escrita como modalidades opostas e estanques. Para a sociolinguística, a relação entre oralidade e escrita é dinâmica e heterogênea, e constitui um continuum de usos e gêneros textuais. Ou seja, a distinção real não está na modalidade em si, mas nas condições de produção, transmissão e recepção da linguagem. A formalidade, por exemplo, não é uma propriedade inerente à escrita, mas sim uma característica que se manifesta em determinados contextos comunicativos, podendo ocorrer tanto na fala quanto na escrita. Da mesma forma, a revolução digital enfraquece a oposição entre condições de circulação, assegurando que, a depender do contexto, tanto fala quanto escrita possam ser efêmeras ou duradouras.
A visão tradicional
Para a visão linguística tradicional, embora ambas constituam formas legítimas de expressão linguística, oralidade e escrita se distinguem significativamente em suas características, usos e, principalmente, no prestígio social que lhes é atribuído.
A primazia da oralidade
A oralidade refere-se ao uso da língua falada, caracterizada pela espontaneidade, imediatidade e pela presença de elementos não verbais (gestos, entonação, expressões faciais, proxêmica) que complementam, modificam ou até mesmo substituem a fala. É a forma primária e universal de aquisição da linguagem e, historicamente, a modalidade mais antiga e fundamental da comunicação humana. Todas as sociedades desenvolveram sistemas de comunicação oral, enquanto a escrita é uma tecnologia relativamente recente e restrita a certas culturas.
A oralidade tende a ser mais contextualizada, dependendo frequentemente do conhecimento compartilhado entre os interlocutores, das situações comunicativas e dos elementos situacionais. Essa característica, longe de representar uma deficiência, constitui uma riqueza comunicativa que permite economia expressiva, criatividade linguística e construção colaborativa de sentidos.
A escrita como tecnologia social
Por outro lado, a escrita é a representação gráfica da língua, que exige planejamento, sistematização e um distanciamento espacial e temporal maior entre emissor e receptor. A escrita permite a preservação e transmissão do conhecimento através do tempo e do espaço, funcionando como uma extensão da memória humana. Contudo, essa modalidade também demanda maior explicitação e autonomização contextual, pois não dispõe dos mesmos recursos paralinguísticos da fala.
A língua escrita, historicamente, desenvolveu-se associada a registros mais formais e a normas mais rígidas, principalmente devido a seu papel institucional e sua vinculação aos centros de poder político, religioso e econômico.
Características distintivas
As diferenças entre esses dois registros podem ser sistematizadas em diversos aspectos, sempre considerando que se trata de tendências gerais e não de oposições absolutas:
- Planejamento e processamento: A oralidade permite maior interatividade e processamento em tempo real, com possibilidade de reformulações, correções e negociação de sentidos durante a interação. A escrita, por sua vez, possibilita maior planejamento prévio e revisão, mas pode resultar em menor dinamismo interacional.
- Contextualização e autonomia: A fala integra-se naturalmente ao contexto situacional, cultural e interacional, criando significados através da sinergia entre elementos linguísticos e extralinguísticos. A escrita busca maior autonomização contextual, desenvolvendo estratégias específicas para criar [[coerência textual] e coesão textual.
- Recursos semióticos: A oralidade mobiliza uma rica gama de recursos prosódicos (entonação, ritmo, pausas, intensidade), gestuais, faciais e corporais que participam ativamente da construção do sentido. A escrita desenvolveu recursos gráficos alternativos (pontuação, espacialização, recursos tipográficos) para compensar parcialmente essa diferença.
- Temporalidade: A escrita confere permanência e permite revisitação da mensagem, facilitando análises mais detalhadas e reflexivas. A oralidade, embora efêmera em sua materialidade, pode ter maior impacto emocional e social imediato.
- Variação e normatização: Historicamente, a escrita tendeu a uma maior padronização devido aos processos de codificação e institucionalização, enquanto a oralidade manteve maior flexibilidade e capacidade de variação linguísticao e inovação linguística.
A visão sociolinguística
A pesquisa sociolinguística contemporânea tem demonstrado que a oposição rígida entre fala e escrita é inadequada para dar conta da complexidade dos usos linguísticos reais. O tratamento das relações entre as duas modalidades não pode ser centrado exclusivamente no código linguístico, pois isso leva a uma oposição ingênua e simplista que não reflete a realidade da comunicação humana. A língua, em sua realização, manifesta-se essencialmente como heterogeneidade e variação, e não como um sistema único e abstrato. Por isso, estudos mais recentes defendem que fala e escrita apresentam mais semelhanças que diferenças, sendo a dicotomia uma simplificação que falha em dar conta da complexidade dos fatos linguísticos.
Nesse sentido, diferentes gêneros discursivos posicionam-se em pontos diversos de um continuum que vai do mais oral ao mais escrito, e muitas práticas comunicativas contemporâneas caracterizam-se pela hibridização entre modalidades. O estudo das práticas de escrita em contextos digitais — como mensagens instantâneas, redes sociais, comentários online — revela, por exemplo, processos fascinantes de oralização da escrita e escrituralização da fala. Esses fenômenos desafiam categorizações tradicionais e exigem marcos teóricos mais flexíveis e contextualizados.
A perspectiva sociolinguística atual também incorpora a dimensão multimodal da comunicação, reconhecendo que os sentidos se constroem através da articulação de múltiplas semioses: linguística, visual, gestual, espacial, sonora. Essa abordagem supera a visão logocêntrica que privilegiava exclusivamente a dimensão verbal da comunicação.
Nesse sentido, a contribuição do linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi, uma das principais referências no tema, é crucial. Em sua obra, ele propõe uma dupla distinção que serve como alicerce para uma nova compreensão da matéria:
- Oralidade e Letramento como Práticas Sociais: A primeira distinção foca no papel social das modalidades. A oralidade, como prática social, refere-se ao conjunto de atividades e interações mediadas pela fala no cotidiano. É a porta de nossa iniciação à racionalidade e um fator de identidade social, regional ou grupal. O letramento, por sua vez, é a prática social da escrita, englobando todos os usos e funções que a escrita tem na vida em sociedade. O letramento não se restringe à mera habilidade de decodificar letras, mas à capacidade de usar a escrita de forma adequada e contextualizada em diferentes eventos sociais.
- Fala e Escrita como Modalidades de Uso: A segunda distinção aborda os aspectos técnicos e a materialização do código linguístico. A fala é a modalidade de uso articulada oralmente, enquanto a escrita é a modalidade de uso executada graficamente, utilizando um sistema de letras, sinais de pontuação e acentuação. Essa diferenciação técnica é importante, mas não pode ser o único critério de análise, pois ignora a influência mútua e as sobreposições que ocorrem no dia a dia.
A superação da visão dicotômica se dá com a adoção do conceito de continuum oralidade-escrita. Em vez de categorias opostas, fala e escrita são vistas como os polos de uma mesma linha, ao longo da qual se distribuem os diversos gêneros textuais. Gêneros que se aproximam mais do polo da oralidade são aqueles com alto grau de interação, espontaneidade e pouca formalidade (ex.: uma conversa de bar). Já os gêneros que se situam no polo da escrita são caracterizados por um maior planejamento, menor interação e maior formalidade (ex.: um contrato jurídico). Contudo, a maioria dos textos do cotidiano não se encaixa de forma estrita em nenhum dos polos, mas sim em um ponto intermediário, como as cartas familiares ou as mensagens eletrônicas. A tabela a seguir ilustra a distribuição de alguns gêneros textuais ao longo desse continuum.
+ Distribuição de Gêneros Textuais no continuum Oralidade-Escrita| Polo de Referência | Gênero Textual | Grau de Planejamento | Interação | Exemplos de Características
Exportar para as Planilhas |
|---|---|---|---|---|
| Hesitações, repetições, fragmentação, vocabulário informal |
A tabela revela que a adequação da linguagem não se baseia em um julgamento de "certo" ou "errado", mas sim na sua funcionalidade dentro de um contexto específico. O que determina a escolha de um gênero e suas características é o momento de enunciação e a finalidade da comunicação, ou seja, o "para quem escrever" e o "como escrever". Uma crônica não é um "texto errado" por usar oralidade; ela é eficaz por isso. A linguagem jurídica, embora primordialmente escrita e rígida, coexiste com o uso intenso das práticas orais nos tribunais, mostrando que a mesma área discursiva exige ambas as modalidades, de acordo com o contexto. O entendimento desse dinamismo é a principal lição da sociolinguística para o estudo das modalidades.
Marcas e gêneros híbridos =
O conceito de continuum se manifesta de forma clara na existência das "marcas de oralidade" na escrita e vice-versa. As marcas de oralidade são traços de nossas falas cotidianas que, intencional ou incidentalmente, se infiltram em nossos textos escritos. Gírias, expressões coloquiais ("fulano não é flor que se cheire"), ditados regionalistas, ou marcadores de diálogo como "né?" e "tá" são exemplos comuns. Tradicionalmente, esses elementos seriam evitados em redações formais, como as de vestibulares, por demonstrarem um uso inadequado da norma-padrão. No entanto, a sua presença em certos gêneros escritos não representa um "erro", mas uma característica essencial. A crônica, por exemplo, é um gênero clássico de texto escrito que se apropria deliberadamente das marcas de oralidade para construir um tom mais pessoal e estabelecer um diálogo direto com o leitor. Da mesma forma, cartas pessoais e a comunicação digital em geral também se valem dessa hibridização, situando-se em um ponto intermediário no continuum. Essa capacidade de transitar e mesclar traços de uma modalidade em outra é a principal evidência da ineficácia de uma visão dicotômica. De forma análoga, a modalidade oral também pode apresentar traços característicos da escrita. Uma palestra acadêmica ou uma sustentação oral em um tribunal, por exemplo, são eventos comunicativos orais que demonstram um alto grau de planejamento, uso de vocabulário formal e construções sintáticas mais complexas — características que, em tese, seriam típicas da escrita. O que se percebe é que a escolha de se aproximar de um ou outro polo no continuum não é uma questão de certo ou errado, mas de adequação ao contexto de enunciação ou criação do texto. A linguagem utilizada por um advogado ao redigir um contrato é a mesma utilizada, de forma planejada, ao apresentar seu caso em uma audiência. Em ambos os casos, a formalidade é requerida. Esse princípio de adequação contextual guia as escolhas linguísticas e reforça a ideia de que a língua se molda ao seu uso social. O que importa não é a modalidade em si, mas o reconhecimento de que os "usos e gêneros textuais" são o verdadeiro critério de análise.
A Revolução Digital e o reforço do continuum =
O advento da internet e das redes sociais nos últimos anos provocou uma revolução na comunicação humana, criando um novo cenário que borra de forma definitiva as fronteiras entre oralidade e escrita. Esse ambiente digital se tornou um laboratório vivo para a observação do continuum, pois a velocidade e a informalidade da comunicação online exigiram a criação de um novo código que mimetizasse as características da fala na escrita. O fenômeno mais notável desse processo é o surgimento do "internetês". O internetês é um sistema de linguagem taquigráfica, fonética e visual que se desenvolveu para facilitar e acelerar a comunicação escrita em ambientes digitais, como chats e mensagens de texto. Ele é frequentemente descrito como um "novo tipo de gênero textual" , com características próprias que o distinguem de outras formas de escrita. As manifestações do internetês são variadas. Ele se expressa através de abreviações ("vc" para você, "pq" para porque), supressão de acentos gráficos, neologismos e o uso de recursos visuais para mimetizar a entonação da fala. Por exemplo, a repetição de letras em palavras como "e aiii" ou "amei demaisss" busca reproduzir graficamente a entonação enfática da fala. O uso de emojis, emoticons e a repetição de caracteres como o "kkkk" são estratégias escritas para representar o riso, a emoção e outras expressões que, na modalidade oral, seriam transmitidas por recursos extralinguísticos, como o tom de voz e a expressão facial. Essa busca da escrita para compensar a ausência do contexto oral é um dos exemplos mais claros do dinamismo do continuum. O desenvolvimento do internetês e de outras formas de comunicação digital mudou significativamente as práticas de leitura e escrita. Embora o material de pesquisa levante preocupações sobre como essa linguagem pode afetar a escrita formal dos jovens , uma análise sociolinguística mais aprofundada nos permite ver o fenômeno sem preconceitos. Pesquisas mostram que os alunos geralmente têm "consciência da diferenciação das formas de comunicação". Eles são capazes de adaptar sua escrita ao contexto, usando o internetês em ambientes informais e a norma-padrão em situações formais, como redações escolares. A questão, portanto, não é de "erro" ou "corrupção da língua", mas de adequação e de reconhecimento de que as modalidades se influenciam e se hibridizam constantemente. A ascensão da escrita digital prova que a oralidade, inerente ao ser humano , sempre encontrará um caminho para se manifestar, mesmo em meios originalmente concebidos para a escrita, expandindo assim o continuum linguístico.
O preconceito linguístico contra a oralidade: ideologias e poder
A hierarquização artificial das modalidades
Um dos aspectos mais problemáticos na relação entre escrita e oralidade é a construção histórica de uma hierarquia valorativa que posiciona a escrita como superior, correta e prestigiosa, relegando a oralidade a uma posição subalterna, associada ao erro, à informalidade e à menor competência linguística. Essa hierarquização não é natural nem linguisticamente justificável, mas resultado de processos históricos, políticos e ideológicos específicos.
O preconceito linguístico contra a oralidade manifesta-se de múltiplas formas na sociedade brasileira: desde a desvalorização de variedades regionais e sociais até a imposição de padrões de fala que reproduzem características da escrita formal. Essa ideologia do "português correto" ignora a competência linguística natural dos falantes e impõe modelos artificiais que não correspondem à realidade comunicativa cotidiana.
Oralidade e exclusão social
O preconceito contra as modalidades orais de uso da língua funciona como um poderoso mecanismo de exclusão social. Quando se desqualifica a fala de determinados grupos sociais — classificando-a como "errada", "feia" ou "inferior" — está-se, na verdade, desqualificando os próprios falantes e seus universos culturais. Esse processo é particularmente violento quando atinge:
- Variedades regionais: O desprestígio de sotaques e características linguísticas regionais reflete preconceitos geográficos e econômicos mais amplos.
- Variedades sociais: A discriminação contra formas de falar associadas a classes populares reproduz e reforça desigualdades socioeconômicas.
- Variedades étnicas: O preconceito contra características linguísticas de comunidades afro-brasileiras, indígenas ou de imigrantes revela dimensões racistas e xenófobas do preconceito linguístico.
A falácia da "Língua Padrão"
A imposição de um suposto "padrão oral" baseado na escrita formal constitui uma das manifestações mais perversas do preconceito linguístico. Essa falácia ignora que:
- A oralidade possui suas próprias regras e padrões, diferentes mas não inferiores aos da escrita;
- Ninguém fala como se escreve, nem mesmo os usuários mais escolarizados da língua;
- A variação é inerente e necessária ao funcionamento de qualquer língua viva;
- A competência oral não se mede pela proximidade com padrões escritos.
Implicações sociolinguísticas aprofundadas
Oralidade como laboratório da mudança linguística
A abordagem sociolinguística contemporânea reconhece a oralidade como o principal laboratório da inovação e mudança linguística. As transformações fonéticas, morfológicas, sintáticas e lexicais emergem prioritariamente na fala espontânea, onde a criatividade linguística encontra terreno fértil para manifestar-se. Essa dinamicidade da oralidade não representa caos ou deterioração, mas vitalidade e adaptabilidade linguísticas.
Os estudos variacionistas, iniciados por William Labov e desenvolvidos por diversas gerações de sociolinguistas, demonstraram que a variação oral segue padrões sistemáticos e previsíveis, regulada por fatores linguísticos e sociais específicos. O famoso estudo de Labov sobre a estratificação social da variável (r) em Nova Iorque revelou como o prestígio social se associa a variantes linguísticas específicas, mas também como essa associação é arbitrária e mutável.
Escrita e reprodução de desigualdades
Embora a escrita seja frequentemente apresentada como neutra e democrática, a pesquisa sociolinguística revela como ela pode funcionar como instrumento de reprodução de desigualdades sociais. O acesso diferenciado à cultura letrada, as variações no domínio de gêneros textuais prestigiados e a imposição de padrões escritos específicos como únicos legítimos constituem mecanismos sutis mas eficazes de exclusão.
A relação entre letramento e poder não é simples nem linear. Diferentes tipos de letramento conferem diferentes tipos de capital simbólico, e a valorização exclusiva do letramento escolar/acadêmico pode invisibilizar outras formas de competência textual presentes nas comunidades.
Os conceitos de letramentos múltiplos e multiletramentos ampliam nossa compreensão das competências comunicativas necessárias na contemporaneidade, incluindo não apenas o domínio da leitura e escrita tradicionais, mas também habilidades relacionadas à navegação em ambientes digitais, interpretação de linguagens visuais, produção multimidiática, entre outras.
Desafios contemporâneos e perspectivas
Tecnologias digitais e reconfiguração das modalidades
As tecnologias digitais têm provocado reconfigurações profundas nas relações entre oralidade e escrita. Recursos como áudios em aplicativos de mensagem, videoconferências, reconhecimento de voz e síntese de fala criam novas possibilidades de hibridização modal. Essas transformações desafiam não apenas nossas práticas comunicativas, mas também nossos marcos conceituais para compreendê-las.
Educação linguística e combate ao preconceito
A perspectiva sociolinguística sobre a relação entre oralidade e escrita traz profundas e necessárias implicações para a educação, especialmente no ensino de língua materna. A Sociolinguística Educacional contribui em duas frentes principais: primeiro, ao promover o respeito à ecologia linguística de uma comunidade, demonstrando que toda variação é regida por regras linguísticas e sociais e não representa um "caos". Segundo, ao possibilitar um trabalho mais significativo com textos orais e escritos, o que permite aos professores compreenderem a variação de forma mais precisa. Uma das contribuições mais importantes é a desconstrução da ideia de "erro". O professor que compreende o continuum entende, por exemplo, que muitos dos desvios ortográficos apresentados pelos alunos em suas redações não são sinais de deficiência ou falta de conhecimento da língua, mas sim o reflexo de processos variáveis que são comuns na modalidade oral. A variante de fala "nós fumo", por exemplo, não é um "erro" na modalidade oral; é uma variante legítima. O problema surge quando essa variante é transportada de forma inadequada para o contexto da escrita formal. O problema, portanto, não é de conhecimento da língua, mas de consciência sobre a adequação do gênero e da modalidade para um dado contexto de letramento. A compreensão desse processo permite uma intervenção pedagógica mais eficaz e menos estigmatizante, substituindo a ideia de "corrigir o erro" pela de "construir a consciência sobre o uso adequado". Essa perspectiva é crucial para o combate ao preconceito linguístico. A fala, por ser o principal meio de variação, pode facilmente levar à estigmatização do indivíduo, enquanto a escrita, por ser pautada na norma, o faz bem menos. O preconceito, especialmente contra falantes de classes sociais menos favorecidas, é uma realidade que a escola precisa enfrentar. Ao invés de reforçar estereótipos (como o "falar caipira" ou o "falar nordestino"), o ensino deve propiciar a conscientização do aluno sobre a adequação linguística em diferentes situações sociais. O estudo da relação entre oralidade e escrita, por meio do conceito de continuum, oferece uma ferramenta poderosa para essa tarefa, desconstruindo a ideia de "certo" e "errado" e substituindo-a pela de "adequado" e "inadequado" para um determinado contexto.
O campo educacional constitui um espaço privilegiado tanto para a reprodução quanto para o enfrentamento do preconceito linguístico. Uma educação linguística crítica deve:
- Valorizar a diversidade linguística como riqueza cultural;
- Desenvolver a competência comunicativa em diferentes registros e modalidades;
- Questionar ideologias linguísticas discriminatórias;
- Promover o respeito às variedades linguísticas de origem dos estudantes;
- Ensinar a norma culta sem desqualificar outras variedades.
Políticas linguísticas e cidadania
As questões relacionadas à oralidade e à escrita não são meramente técnicas ou pedagógicas, mas fundamentalmente políticas. O desenvolvimento de políticas linguísticas democráticas exige o reconhecimento da legitimidade de todas as variedades linguísticas e o combate aos mecanismos de discriminação linguística que perpetuam desigualdades sociais.
Considerações finais
A Sociolinguística oferece-nos instrumentos teóricos e metodológicos para compreender a complexa relação entre escrita e oralidade para além de visões simplistas e preconceituosas. Ao investigar as dinâmicas sociais que se manifestam em ambas as modalidades, reconhecemos que são formas igualmente legítimas e sofisticadas de expressão linguística, cada uma com suas especificidades, potencialidades e funções sociais.
A superação do preconceito linguístico contra a oralidade não implica desvalorizar a escrita, mas questionar hierarquias artificiais e promover uma compreensão mais democrática e cientificamente fundamentada da diversidade linguística. Nesse sentido, o trabalho sociolinguístico contribui não apenas para o avanço do conhecimento científico sobre a linguagem, mas também para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Ao analisar as diferenças, interconexões e tensões entre escrita e oralidade, ganhamos uma compreensão mais profunda da língua como fenômeno social complexo, historicamente situado e politicamente relevante. Esse olhar crítico e científico é fundamental para enfrentar os desafios comunicativos do século XXI e construir práticas linguísticas verdadeiramente democráticas.
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