A NovaFala no universo literário de George Orwell: uma análise linguístico-literária de 1984 PEDRO SIMõES (2019) Este artigo analisa a Novafala criada por George Orwell em 1984 (1949), explorando como o autor utiliza a língua para refletir sobre o controle do pensamento e da liberdade de expressão. A partir de uma perspectiva linguística e literária, o texto examina a estrutura da Novafala, sua relação com a hipótese Sapir-Whorf e possíveis paralelos com o mundo real, mostrando como a manipulação da linguagem pode influenciar a forma de pensar. Sabe-se que a língua é um instrumento de dominação. Nós, brasileiros, falamos português, um idioma que nos foi imposto e hoje consideramos como nosso. Porém, o português usual do brasileiro é uma versão do original, repleta de expressões e gírias diferentes do idioma matriz. No entanto, no caso de 1984, essa ideia é levada ao extremo, pois a novafala deixa de ser uma língua e se torna um mero código de comunicação, perdendo a capacidade de expressar figuras de linguagem e sinônimos, propriedade única das línguas naturais. A novafala tem dois objetivos principais: controlar o que e como é dito, e ocultar todo o passado, como se pode atestar: Estrutura da novafala1984 é um romance político, publicado em um contexto de guerra fria em que a discussão sobre regimes totalitários estava em alta. O objetivo do governo em 1984 é o de reprimir toda a individualidade e subjetividade de cada ser humano, transformando-os em meras peças do sistema, ovelhinhas que seguem ordens. Qualquer tipo de rebelião passa a ser duramente combatida, e não há esperanças de qualquer tipo de mudança. Nesse contexto, a novafala constitui um recurso literário utilizado para simbolizar a distopia, isto é, um estado imaginário em que se vive sob condições de extrema opressão, desespero ou privação. Mesmo no universo de 1984 a novafala é um idioma artificial, sendo elaborada minuciosamente pelo chamado Ministério da Verdade. Não é a língua materna de nenhum dos habitantes da Oceânia.A novafala não deriva da criação de novas palavras, e sim pela supressão e remoção de alguns dos seus sentidos, cujo objetivo era o de restringir o escopo do pensamento. Assim, não há razão para existirem, por exemplo, as palavras “mau”, “excelente”, “péssimo”, “horrível” ou “ótimo”. Prevalece, de modo redutor e objetivo, como desbom e duplibom, por exemplo, palavras que renegam as da velhafala Além disso, não existem irregularidades na língua. Para simplificá-la ao máximo, passam a ser retiradas todas as exceções da gramática. Outra característica marcante deste idioma fictício é a extinção de algumas palavras perigosas para o partido. Inúmeras palavras como honra, justiça, moralidade, internacionalismo, democracia, ciência e religião simplesmente deixarão de existir, passando a ser englobadas em alguns poucos vocábulos reducionistas. Todas essas expressões em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, estavam contidas no termo crimepensar. A hipótese Sapir-Whorf, também conhecida como relativismo linguístico, é uma teoria proposta por Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf que afirma que a estrutura da língua afeta a cognição e visão de mundo de seus falantes e vice-versa, interagindo de forma dinâmica. Um exemplo que foi utilizado para ilustrar sua pesquisa foi a ideia de tempo na língua Hopi, um idioma indígena dos Estados Unidos. Segundo Benjamin, a língua Hopi não tinha uma palavra para ‘tempo’ e, assim, não possuía este conceito em sua cultura. Percebe-se que o norte e o sul do Brasil, apesar de falar a mesma língua, têm culturas bastante diferentes. Por outro lado, gaúchos são bastante próximos culturalmente dos uruguaios, que falam outro idioma. Mesmo assim, a língua portuguesa lhes traz características que os unem como a palavra ‘saudades’, ‘cafuné’ e o sufixo ‘inho’. A hipótese Sapir-Whorf é dividida em duas: a forte, que defende a ideia da língua determinar a cultura, e a fraca, que propõe que ela a influencia. Enquanto a “versão” forte da hipótese já foi descartada no ambiente acadêmico, a fraca continua sendo popular entre alguns estudiosos. A novafala no mundo real Assim, imaginemos hipoteticamente que um governo tenta aplicar as ideias do romance na vida real. No mundo real o governo regularmente comete gloticídios, isto é, extinguir as línguas existentes em um determinado local. Mesmo assim, esses idiomas dificilmente desaparecem por completo, já que sempre deixam marcas na língua do dominador. Assim, em 1984, as crianças que nascessem depois de 2050 dariam uma nova forma a novafala, fazendo-o como a velhafala novamente. 1984 é uma sátira, uma caricatura de governos tirânicos, que existem, existiram e sempre existirão. As revoltas são raras e, quando ocorrem, são facilmente combatidas. Em 1984 a repressão é silenciosa, pois é punida com morte. A resistência é muito difícil e se é obrigado a conviver com o sistema opressor. Uma ditadura é mais “bem-sucedida” quando oprime todos os aspectos do ser humano, inclusive seu pensamento. Em 1984 até mesmo o sexo é regulado, além de constituir uma atividade pouco prazerosa. 1984 é uma sátira porque não existe uma ditadura absoluta. Mesmo nos mais brutos regimes totalitários não se consegue retirar a humanidade das pessoas e a esperança de um mundo melhor. A língua é um exemplo extremo de como é a ditadura em um estado máximo porque mesmo no regime militar e na Rússia Stalinista não se deixou de produzir literatura ou música de qualidade. Como uma boa obra literária, é deixado em aberto como a novafala se desenrolaria no futuro, se as novas gerações encontrariam uma maneira de dribá-la ou se tudo ocorreria como planejado. Como Orwell morreu pouco depois de publicar o livro, nunca saberemos...ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Publicado originalmente em 1949.