Entrevista com o escritor André Cunha FERNANDO FIDELIX NUNES (2025) André Cunha é um dos principais nomes da prosa do Distrito Federal nos últimos dez anos, com diversas crônicas publicadas na imprensa local e romances. Na sua trajetória literária, se destacam os romances Brasília, GRAVIDADE ZERO e Quem falou?, este semifinalista do Prêmio Jabuti na categoria romance literário no ano de 2024. Nesta entrevista, vamos conversar um pouco sobre as suas duas principais obras e sobre os desafios para se popularizar o gênero romance dentro da literatura do DF. Fernando Fidelix Nunes: A intertextualidade, que diz respeito às diferentes relações que os textos estabelecem com outros textos, é um recurso muito presente nos romances Brasília, GRAVIDADE ZERO (2016) e Quem falou? (2023). Nas obras você utilizou, por exemplo, diversos slogans publicitários recorrentes nas últimas quatro décadas, principalmente quando fazia referência a alguma marca famosa – como Nescau, Caloi, Campari – e trouxe inúmeras músicas para relacioná-las com os sentimentos e as situações vivenciadas pelos personagens. Como você organizou a sua escrita para inserir tantas referências? Você fez algum tipo de pesquisa específica para organizar esse repertório?André Cunha: Fiz pesquisa, sim. Tinha slogans que eu conhecia de memória afetiva, aí também pesquisei na internet e em alguns livros de referência, tipo coletâneas com as propagandas mais famosas. Aí fui inserindo esses slogans, creditando, mas nem sempre, as respectivas marcas, ao longo da narrativa, de acordo com o contexto da história. Sempre que vejo alguém falando algo do tipo “a literatura é um dos poucos lugares ainda sagrados e blindados contra a publicidade”, penso: é porque você não leu Brasília, GRAVIDADE ZERO. Nele, a publicidade se infiltra no texto, nos pensamentos e até no caráter dos personagens. No artigo “O coloquialismo presente na literatura contemporânea”, publicado pelo programa de Iniciação Cientifica da Universidade Paulista em 2020, a autora Luísa Pires, que foi minha aluna e hoje é minha amiga, faz uma análise do livro e se deu ao trabalho de contar quantos slogans aparecem. Ela chegou ao número de 115. O padrão é o slogan vir em itálico e depois o nome marca entre parênteses, mas nem sempre sigo o padrão, tem slogans e sacadas publicitárias soltas no corpo do texto, além de outros subentendidos. Exemplo: quando apresento o personagem Alexandre, o pai do protagonista, crio um vínculo imediato com a Petrobrás, com o fato de ele trabalhar na Petrobrás, ser um executivo da Petrobrás, algo de que o filho tem orgulho. Ele é apresentado assim: “Alexandre, o tipo de cara que fazia de cada desafio uma nova fonte de energia (...)” Ora, o slogan da Petrobrás é, ou foi por muitos anos, “O desafio é a nossa energia.” Então, a referência está lá, mas implícita. Tem outras sacadas desse tipo. No caso do Quem falou?, a narradora e protagonista é uma mulher com veleidades literárias, então tem algumas referências a escritores como Balzac, Oscar Wilde e Clarice Lispector. Ela também é meio chicólatra (fã de Chico Buarque), e tem muitas referências explícitas e implícitas às letras e canções dele.Fernando Fidelix Nunes: Que efeitos de sentido você acha que conseguiu construir em seu texto com essas diversas referências intertextuais?André Cunha: No caso do Brasília, GRAVIDADE ZERO, a intenção foi criar esse vínculo, fazer da linguagem publicitária uma das camadas do texto, algo presente, cotidiano, normal, tipo a naturalização, na literatura, do capitalismo. Sei que é uma espécie de sacrilégio conspurcar o texto literário dessa forma, mas foi consciente, para causar esse efeito de “não há pra onde fugir, o capitalismo sempre vai te pegar.” Na história, o protagonista sonha em se dar bem e virar um empresário ou executivo de sucesso, e esse sonho, essa ambição, esse, para usar um termo bem acadêmico, pathos, está presente o tempo todo, a vontade de vencer na vida, de empreender, de prosperar, de se dar bem, de fazer uma grande jogada, um negócio da China, de ficar rico. Desnecessário mencionar que ele se dá mal, pois a história é uma tragédia. Então tem essa reflexão sobre a gente ser impelido a querer uma coisa, em geral dinheiro, sem ser consultado, tipo aquele bebê em busca da nota de um dólar na capa do disco do Nirvana. Na sinopse do livro já é explicado que o protagonista foi “praticamente alfabetizado através de breves imperativos categóricos como Compre Batom ou Não esqueça minha Caloi (...)” Ou seja, o consumismo está tipo no DNA cognitivo do cara. No caso do Quem falou?, a narradora tem uma relação de amor e ódio com certas letras de canção, chega a fazer uma crítica demolidora de uma música do Cartola, e cita versos e canções do Chico Buarque, nem sempre de modo óbvio. Como é uma personagem inquisitiva e intensa, essa intensidade musical é um traço da personalidade dela. Tipo, ela fica analisando um verso por vários ângulos e se perguntando “que m.... esse cara está querendo dizer?” Então, tem a ver com o jeito e a personalidade dela. Quero acreditar que isso dá mais verossimilhança e densidade ao texto. Gosto da coisa das referências, dos easter eggs escondidos na narrativa, mas não se for gratuito, e sim pra dar mais camadas ao texto, tendo um sentido dentro do desenvolvimento do tema e da trama. Fernando Fidelix Nunes: No ano de 2024, o seu livro Quem falou? foi semifinalista do Prêmio Jabuti na categoria romance literário. Qual foi a importância dessa indicação para a sua carreira como escritor?André Cunha: Fiquei feliz e contente, trouxe um certo prestígio como escritor que eu ainda não tinha, mas em termos de vendas o efeito foi discreto.Fernando Fidelix Nunes: A literatura do Distrito Federal ficou conhecida nas últimas décadas, principalmente por meio de obras poéticas, como as de Nicolas Behr, Meimei Bastos e Anderson Braga Horta. Essa ênfase na produção poética também ocorre em trabalhos da crítica literária do Distrito Federal. De que modo você acha que o gênero romance pode se tornar mais popular com o público e com a crítica literária no Distrito Federal?André Cunha: Do mesmo modo que no resto do país, ou seja, tem que entrar na marra, à fórceps. As pessoas não têm hábito de ler, poucos têm tempo e disciplina de ler romance, então tem que ser teimoso, chato, lidar bem com o desinteresse e a indiferença, fazer o seu corre, a sua divulgação, buscar o seu leitor e o seu lugar ao sol, contra tudo e contra todos. Tem na cidade algumas iniciativas legais como clubes de leitura e discussão, acho isso bem-vindo e saudável, mas, do meu ponto de vista, a leitura é algo muito particular e íntimo. Pode até ser que alguém desenvolva esse hábito já na maturidade, mas, até onde posso perceber, a hora de você fisgar o leitor é na adolescência. Se a pessoa entrar na vida adulta sem o hábito da leitura, dificilmente vai desenvolver. A responsabilidade aqui é da escola e da família, mas principalmente da família. Se a criança só vê o pai e a mãe no celular, esse é o exemplo que ela vai seguir. E isso tem acontecido cada vez mais.